Ele estava sorrindo mas não sabia por quê. Tinha um motivo. O que era mesmo? Havia algo bonito. Uma compreensão. Estava na ponta da língua. O mundo escureceu e um certo desespero foi voltando, mas desespero de quê? Ele mal compreendia a emoção, tão distante e alienígena entre seus pensamentos.
Art piscou algumas vezes e vacilou. A mente recuou com força, contraindo-se no crânio limitado dele com um impacto que quase o nocauteou. Ele fez uma careta, tentando levar uma mão à cabeça, mas algo segurava seus braços. Estava de joelhos?
Transcendência. Tinha dado certo? Ele não fora morto pela Consequência? Art checou os relógios dentro da cabeça e viu que tinham se passado trinta segundos.
Abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi Rocan, caído. Tentou erguer as defesas, mas a mente era flácida. Não respondia aos seus comandos, como um músculo exausto. Mas mesmo assim conseguiu enxergar um pouco. Procurou pela mente de Rocan, e, no lugar da energia que estava acostumado a sentir, não havia nada. Forçou a percepção, procurando... E, próximo à própria mente, encontrou uma rocha.
Mente à matéria. Da mesma forma que ele desfez o ataque de Rocan, transformando a energia em uma pedra, alguém transformara a mente de Rocan em matéria. Exatamente onde ficava essa matéria ele não tinha ideia. Nunca pensara em fazer isso, mas era uma ideia muito boa.
Espera, eu que fiz isso? Durante a Transcendência?
Art sorriu. Von é o caralho. EU fiz isso. Ainda colocara a rocha próxima à mente dele, para que pudesse analisá-la com calma depois. De novo tentou levar uma mão à testa, para pentear desajeitadamente o cabelo, mas algo segurava os seus braços. Olhou para baixo.
— Art — disse Lena, caída em seus braços. De alguma forma ela conseguia falar com os próprios lábios. Não fazia esforço para sobreviver.
Art sentiu a espinha fria, a felicidade se apagando como uma vela atingida por uma avalanche. Pôs-se a trabalhar para ajudá-la, mas quando tentou reconstruir o corpo dela a mente não respondeu. Lembrava-se vagamente do que sentira há pouco, mas era tudo distante, abstrato, inalcançável. Se tornara outra pessoa na Transcendência, e agora renascia de novo na pequenice, exausto, coberto de sangue e lágrimas. Esforçou-se ao máximo para tentar ajudar Lena, mas ela acenou, negando.
— Lena... — Ele sentia as bochechas quentes, úmidas. Estava em seu limite de exaustão, e nem todos os seus truques juntos conseguiram deixá-lo bem de novo.
— Eu ia te ajudar, Art. Com o que você quer fazer. Eu pensei em tirar conhecimento do Rocan para te ajudar, e quem sabe eu...
— Mas Lena... — Art segurava-a na vida. Mesmo com a mente exausta por causa do embate e da Transcendência. Mesmo com as emoções deixando tudo turvo e difícil. Ele precisava. — Por quê? Eu nunca achei que você... Isso... Isso não é você.
— Eu sei. Eu nunca tomei a iniciativa com nada na vida. Se não fossem vocês três, se não fosse a Alesia, o Von, eu nunca teria estudado e aprendido com Merriam. Você tá certo. Isso não era eu. Mas... Mas depois daquele dia que você e o Von brigaram, depois que vocês foram pros Picos...
Um espasmo frio percorreu o corpo de Art. Lena sorriu.
— Você acha mesmo que eu não sabia? De tudo que se passou dentro de mim?
— Eu... — Art tremia violentamente, fazendo gotículas de suor e lágrimas salpicarem o rosto ensanguentado de Lena. — Nós íamos te contar. Eu juro.
— Eu sei que iam. — O pequeno sorriso de Lena não via limite em sua graça. — Eu sei de tudo. Por isso eu fiz. Eu vi seu plano, Art, e... Eu queria te ajudar. Queria fazer alguma coisa. De repente estava tão... Motivada. Ambiciosa.
Não. Eu olhei. A mente dela ainda estava ok. Eu e o Von não fizemos nada. As minhas torres não fizeram nada. Isso não é culpa minha. Isso não é culpa minha.
Art sentia a morte se aproximando não como o fim que imaginara enquanto mole, mas quase como uma entidade, quase como a Consequência, agarrando o que restava de Lena e forçando-a para fora dali. Tentou refazer o corpo dela, mas só de pensar nisso o coração doeu. Tentou transformar as folhas, fazer matéria, mas não conseguia.
— Obrigada, Art. — As lágrimas deslizavam agora. — Eu até que estava contente em morrer vendo a frustração do Rocan, mas foi melhor ver você... Fazendo isso. Foi... Eu nem sei descrever. Não tenho mais medo.
Lena já não fazia mais nenhum esforço. Era como segurá-la pela mão, o penhasco abaixo, ele deitado no chão. A força era quase demais.
— Desculpa por não ter feito nada antes. Podia ter sido melhor. Diz pra Cella que ela foi a melhor amiga que eu poderia ter tido. Conta essa história pra Alesia, pra ela se orgulhar de mim. — Ela soluçou, chorando em meio ao seu sorriso. — E diz pro Von que eu queria ter ido falar com ele na formatura. Diz que... Ah, caralho. Eu mesma digo.
Art sorriu com o palavrão.
— Helena...
— Eu confio em você, Art. Faz o seu plano dar certo. E me conta. Me conta tudo, e me faz ver o que eu só vi tarde demais.
A mão escorregou. Lena não fechou os olhos, mas de alguma forma eles... Eles não eram mais dela.
Não era mais Lena. Era uma pilha de ossos, sangue e memórias.
Art demorou algum tempo até conseguir se levantar.
— Não se preocupa, Lena — ele sussurrou, fungando, sentindo os olhos doloridos de tanto limpá-los. — Eu vou ajeitar tudo. Eu vou arrumar tudo desde o começo.
Art se sentia morto. A cabeça latejava, os membros eram uma pilha de dores, e os olhos pareciam inchados e disformes. Sentia fome, frio, e que estava vazio. Não é hora pra vacilar. Não tão perto.
Pela primeira vez Art olhou para o Livro no chão com algum interesse. Boa parte das páginas haviam sido arruinadas com algo que se parecia ácido, mas algumas ainda estavam inteiras. Não que isso importasse: por baixo da capa bonita que ele fizera, aquilo não passava de uma poesia épica em outra língua, o livro mais erudito que ele encontrara nos sebos da cidade.
Rastejou lentamente até o Livro, estudando-o, e virou uma página.
Aquilo não era outra língua.
Não era nenhuma língua que Art já vira, na realidade. Nem as letras que conhecia, nem as mesmas que encontrara no livro de Seh.
Aquele não era o Livro que ele levara à Livraria Lima, para Trevor comprar sem querer e começar tudo aquilo.
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É... E assim termina o capítulo 11. Pobre Lena...
Mas, afinal, de onde surgiu o Livro? Quarta-feira, no penúltimo interlúdio do Princípios do Nada, descobriremos. E depois, começa o penúltimo capítulo: Profecia. Espero que esteja curtindo a história até aqui! Como sempre, se curtiu, deixe um comentário! E dá uma olhada no meu site: http://oucoisaparecida.com.br/
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Princípios do Nada
Mystery / ThrillerE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...