O Livro

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— Bom dia, como posso — começou a atendente da Livraria Lima, mas sua voz cessou de súbito, calada pela mesma força que a fez parar no meio de um passo. Teve um último vislumbre do jovem forte que entrara na loja, e depois se esqueceu desse momento para sempre.

Henderson tinha uma mão erguida e uma expressão de raiva contida. Fechou o punho e o ar à sua volta pareceu se cristalizar, contendo os feixes de luz como se fossem fios loiros presos no vidro. Fora da loja só se via um breu.

Ele caminhou entre as pessoas, estáticas e borradas como manequins impressionistas. A cada passo partia os cristais de luz, os fragmentos girando enquanto tocavam nele e parando em sua ausência, deixando para trás um rastro de rachaduras e escuro. Havia poucas pessoas na loja: dois velhos do centro, um par de garotas rindo, um ou outro perdido, e as três funcionárias. Sem ter maior motivo do que uma intuição, Henderson foi até a mais bonita das três. Art tinha um plano elaborado. Elaborado e completamente estúpido. Bufou.

A garota era morena, cabelo curto caindo pelo rosto, as madeixas bem definidas em cortes retos e modernos, emoldurando seu pequeno rosto redondo e o nariz empinado. Henderson envolveu a cabeça dela com uma de suas enormes mãos nodosas, o polegar no meio da testa, enquanto a outra segurava a garganta. Pelo aspecto de suas mãos e braços, não seria surpreendente se arrancasse a cabeça dela num puxão só. Relaxou, pressionando-a muito de leve. Os olhos dela se fecharam.

Art era mais capaz do que Henderson julgaria possível. Acompanhara o crescimento deles em segredo, sempre presente. Não disse isso a Seh, mas sabia que o amigo fazia o mesmo, até mais do que ele. Eram os amigos de infância do próprio Seh, afinal. A Henderson não faltava cortesia, mas mentiria se dissesse que tinha mais afeição por eles do que por qualquer outra pessoa no mundo.

Seh nunca poderia dizer o mesmo. Ainda amava os amigos com quase a mesma força que o Seh de antes, o garoto verde que vira Henderson por acaso numa tarde qualquer no centro. Não estivesse tão concentrado procurando na mente da garota, teria rido. Por acaso, claro.

Art não tinha um jeito fácil de fazê-la reconhecer Trevor, então teve que recorrer a um plano arriscado. Era cômico, mas certamente eficaz. Já notara o jeito como o garoto de óculos trocava as palavras quando ficava nervoso. E claro que trocaria as palavras: era só olhar para a atendente. Um corte de cabelo e seria Cella, um pouco mais velha e menos amável, mas ainda Cella. Trevor enrolaria as palavras, e a garota obedeceria ao comando de Art, trazendo o livro que ele escondera no ático.

Henderson soltou a garota suavemente, como se a cabeça dela pudesse se desequilibrar do pescoço e cair. Encarou-a por um segundo, procurando por alguma sequela residual do serviço de Art, e não encontrou. Era um trabalho preciso e capaz, mas ainda simplista. Esperava mais do livro no andar de cima.

Subiu a escada em espiral atrás do balcão do caixa, e teve que se abaixar para não bater a cabeça no teto. O ático era um depósito, um mar de poeira flutuante, caixas lotadas, pilhas de livros... E em cima de uma delas um embrulho grande, papel marrom áspero. Henderson quase via as palavras escritas em sua superfície:

A NÃO SER QUE TENHA VINDO ME BUSCAR, NÃO OUSE COLOCAR OS OLHOS EM MIM.

Aquilo sim era arrogante. "Ouse". A maioria das sugestões não era tão agressiva. As pessoas que andassem por ali não notariam o livro, claro, mas além disso ficariam desconfortáveis. Talvez até com medo. Valia a pena se arriscar com a Consequência pelo esforço de deixar aquele livro intocado?

Henderson abriu o embrulho e percebeu que sim.

Tentáculos negros brotaram da superfície do livro, rachando os cristais de luz, disparando na direção do coração de Henderson. Ele não teve dificuldade em pará-los, claro, mas ainda ficou impressionado. Poucas pessoas no mundo conseguiriam encarar a capa preta do livro sem vomitar. O estômago dele embrulhou, a visão ficou turva, e sentiu um gosto de bílis e morte serpentear na língua. O coração acelerou e os olhos cresceram, cada vez mais vermelhos. Mas nada disso aconteceu por causa do livro.

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