Prólogo

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O sol caía forte e vivo, escaldante, tornando o mar quase impossível de se olhar. As ondas batiam no desgastado paredão de pedra que protegia a encosta, mas seu som era só um sussurro entre os gritos que vinham do mercado da cidade marrom-clara, as construções só um tom mais escuras que a areia fina que se esgueirava por tudo. Não fossem as mercadorias anunciadas nas ruas (belíssimos tapetes, grandes gemas, túnicas finas, joias brilhantes, animais, quadros, livros e frutas) tudo teria só duas cores: azul do céu e do mar, marrom da cidade e das pessoas. Ou talvez três, contando com o rubro do vinho que a garçonete trouxe à mesa.

O jovem agradeceu com um sorriso e uma piscadela, respondidos por um rubor intenso da garota. Não fosse a grande cobertura de tecido acima, feita de pano rústico, a temperatura naquelas mesas seria insuportável, como parecia ser no mercado, do outro lado da rua. Na mesa em que os dois estavam, entretanto, a brisa marinha subia pelo paredão e expulsava qualquer calor desagradável. As cadeiras eram simples, de fibra trançada, e a mesa era uma peça só, de madeira áspera. Mas o vinho não tinha nada de rústico.

— Você demorou — disse Henderson, depois de um gole curto e uma expressão de deleite. — Você podia ter só corrido atrás de mim, no centro mesmo. Teria funcionado.

— Era sexta de tarde. Eu te vi por dois segundos e você sumiu. Você sabe quão confusos são os primeiros momentos. Eu não tinha ideia de onde estava. Eu não tinha ideia nem de quem eu era.

— Verdade — respondeu o grande jovem, o mais sério que alguém conseguiria ficar num clima tão agradável. — A gente demora pra se situar... Quanto tempo você levou para me achar mesmo?

— Seis ou sete meses.

— Falando assim eu quase acredito que você não sabe exatamente quantos dias foram. — Henderson riu quase tão alto quanto os homens de turbante da mesa ao lado. — Se eu não te conhecesse, seria capaz de pensar pouco de você. — Ele bebeu o resto do vinho, pedindo mais em seguida. — Lerseh.

Seh bebeu um longo gole e pousou a taça de volta na mesa, suave.

— Lerseh — ele repetiu o próprio nome, sentindo a palavra fluir entre os lábios. Henderson pegou a taça que a garçonete trouxe, agradecendo perfeitamente na língua local. Ela perguntou se Seh também queria outra, e ele negou com a cabeça, voltando à realidade. — Eu demorei tanto porque várias coisas estavam contra mim. Primeiro, a geografia: eu não tinha ideia de onde você morava. Perdi semanas procurando pelo país até concluir que você não era de lá. Segundo, a genética: você é um... ser humano médio. Suas feições, a única informação que eu tinha, são totalmente comuns. A única coisa distinta era a altura, mas mesmo assim não era muito para começar.

— A altura. Curioso como sempre terminamos com a mesma altura. — Henderson brincava com o copo, fazendo o vinho dançar. — Um capricho.

— Sim. — Seh olhava para o mar, tão próximo que ele conseguiria saltar nele direto da sua cadeira, por cima do parapeito baixo do paredão. — E, além disso tudo, tem a quantidade. Tem mais de quatro bilhões de pessoas no mundo.

— Quatro bilhões! — Henderson exclamou. — É muita gente! Quem diria que a lógica e a tecnologia nos levariam tão longe. A ciência em vez do... — Ele ficou distante, percorrendo as memórias, procurando um termo que ele nem sabia se estava lá.

— Dos Picos — Seh completou.

— É. — Henderson arregalou os olhos, por um momento estático, pensativo, até relaxar de novo. — Mas fala sério. Mesmo com todas essas coisas você não teria demorado mais do que uma, duas semanas pra me achar.

— Você pensa muito de mim.

— "A humildade de Lerseh pode soar refrescante, mas depois de alguns anos de convívio torna-se uma piada, um insulto" — citou Henderson, erguendo um dedo. — Geards falava muita besteira, mas essa é uma coisa que eu sempre concordei.

Lerseh riu.

— Tá bom. Tem algo a mais. Eu tentei algo diferente, que nunca tinha tido oportunidade de testar. Eu estava procurando você pela sua natureza. Pela nossa natureza.

— ...ah. — Henderson arregalou os olhos. — Hm, ok, é uma boa desculpa. Funcionou?

— Mais ou menos. As condições eram boas: eu tinha certeza que você existia, mas não tinha ideia de onde estava. Deu meio certo, tão certo que te achei, mas o curioso é que eu detectei outras coisas parecidas...

— Tá brincando. — O sorriso escorreu de seu rosto, substituído por uma seriedade inocente. — Onde?

— Aí que tá. Na cidade onde moro. É um lugar pequeno, simples... Mas tem algo interessante lá, não sei o que é. Por isso repito: vai lá morar comigo. Você não falou que não passou no vestibular? O curso de Física tem vaga sobrando, é só aparecer. O aluguel é barato, e teremos bastante privacidade. É uma cidade mínima. Seríamos só eu e você, como nos velhos tempos, experimentando e aprendendo...

— Hmmm... — Henderson franziu o cenho. — Por mais ridículo que possa soar fazer faculdade, é uma oferta muito tentadora. Meus pais tão me enchendo o saco... E eu ainda sou apegado, sabe? Não quero fazer eles pararem com isso.

— Você podia...

— Eu sei, eu sei, os Picos, et cetera. Mas é difícil. Ainda tenho muita... adolescência em mim.

— É, eu sei como é. — Seh perdeu o foco, fitando o horizonte. — Sei como é.

Os dois ficaram quietos, mirando o mar. A garçonete foi até eles uma dúzia de vezes, mas toda a vez que se aproximava lembrava-se de algo mais urgente e dava meia volta. O movimento no mercado foi desaparecendo até cessar, e os dois continuavam ali, em silêncio. O sol já mergulhava no oceano quando Henderson finalmente falou:

— A gente devia aproveitar.

— Como é?

— Antes de hoje, tinha uma coisa que eu sempre achava engraçada. O cara fica rico quando já é velho e não consegue aproveitar. São poucos os jovens que conseguem realmente viver a vida, não ficar presos ao trabalho pra ganhar dinheiro e usar depois.

— Sei. E aí?

— E aí que agora dinheiro não vale mais nada pra mim. Mas somos jovens! Quando fomos tão jovens juntos? Nunca pudemos ser adolescentes juntos, fazer todo tipo de merda e tudo mais! — Ele abriu um sorriso enorme. — Aproveitar a vida, entende? Quando vamos poder fazer isso de novo? A existência é um parque de diversões!

— Não parece muito sábio — disse Seh, levando a taça à boca instantes antes de perceber que estava vazia. — Nós não devemos interferir. Não temos esse direito.

— Seh, qual é. Claro que não vamos fazer nada. A gente faz regras. Sem interferir. Sem falar com outros. Seremos só dois amigos pro resto do mundo.

— Bom... se a gente não interferir...

— Isso que eu queria ouvir! — Ele bateu na mesa, gargalhando e pedindo mais vinho. — Isso merece alguma comemoração.

— Eu tenho uma ideia. Tava pra fazer isso faz um tempo. — Lerseh tinha um sorriso diabólico nos lábios. — Posso trazer nossos nomes de volta ao mundo.

— Como assim?

— Você nasceu Louis Edward. Eu nasci com um nome ainda pior. Mas posso mudar isso.

— Mudar nossos nomes...? — Ele coçou a cabeça, rindo. — Quer ir num cartório, ou...

Henderson congelou. Os lábios dele se separaram inconscientemente, olhos amplos, enquanto o sorriso de Lerseh crescia.

— Ora, seu... — começou Henderson.

— Feito. Desde o começo de nossas vidas, dentro de todos os registros, mentes e memórias, temos só um nome cada.

— Lerseh e Henderson.

— Jovens demais para o próprio bem.

Eles brindaram e beberam o vinho de uma vez só, depois tornaram as taças longos canecos de cerveja escura e viraram mais algumas doses, até que deixaram uma barra de ouro em cima da mesa e mergulharam no mar.


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