O branco de Seh circulava as figuras, tentava abraçá-las, envolvê-las, mas não conseguia. Era como se houvesse uma película em volta delas, um escuro difícil de se focar, dançando e afastando o claro que compunha todo o resto.
Nenhum dos dois se manifestava num corpo físico. Um tinha uma forma humana distinta, mas sem cor. Uma sombra negra, que se não se movesse podia muito bem ser um buraco recortado no branco, bidimensional, beirando o incompreensível. O outro, assim que chegou, tentou se espalhar, mesclar-se e tornar-se parte de tudo, mas logo que sentiu a presença de Seh e Henderson se limitou a um ponto, sem dimensão. Só sentir e entender a presença deste segundo exigia mais conhecimento e prática do que a maioria dos homens têm na vida.
— Ah não, eles são sem graça — sussurrou Henderson, tão rápido que pareceu só expirar.
A porta se fechou atrás dos invasores, mesclando-se ao branco e desaparecendo em sua imensidão. Eles analisavam o branco, ignorando os dois jovens. Seh e Henderson permaneciam sentados, mas daquele riso que há pouco os envolvia não sobrara nada.
— Sejam bem-vindos, suponho — disse Seh, seu tom nada condizente com a hospitalidade daquelas palavras. — Vocês podiam ter se anunciado antes, ou pedido para entrar. Quem são?
Os invasores não responderam. Ainda analisavam o espaço que os envolvia, usando todos os sentidos que eram capazes de interpretar. Faziam pouco esforço para isso, o que era até impressionante. Observavam com esmero.
— O que foi? — disse Seh. Isso é burro. Isso é tolo. Não seja assim. — Nunca viram uma destas? Não é a minha melhor...
— Quem é você? Quando nasceu? Quando compreendeu?
O branco escureceu um tom. Surgiram pedaços de azul, de vermelho, verde e negro, viajando com a voz até os ouvidos dos dois jovens. Havia um peso sutil naquelas palavras, algo que as envolvia, as protegia, as fazia entrar fundo e serem ouvidas.
— Sou Lerseh. Nasci há vinte e dois anos. Compreendi há mil e três dias — disse Seh, sem opção. Ser afetado por aquilo feriu seu ego mais do que teria admitido. Principalmente por não querer admitir que tinha um ego.
Isso é idiota. É infantil. Não deveria... Eu não deveria estar querendo fazer isso. Seh sentiu a respiração acelerar. Um lado dele esperara por aquele momento por tempo demais.
A sombra se voltou para Henderson.
— Sou Henderson. Nasci a vinte e quatro anos. Entendi há oitocentos e oitenta e seis dias. — Henderson cerrou os dentes, os punhos fechados e densos como pedras. Mas do rosto pétreo esculpiu um sorriso. — E vocês?
O branco tremeu.
— Sou Aere — disse a sombra. — Mestre das Leis. Eu... — A mente de Aere trabalhou rápido e pesado, e conseguiu escapar. Mas o outro, que tentara resistir logo no início, cedeu.
— Sou Hol, Mestre do Espaço — disse aquele sem forma. A luz ao seu entorno se tornou difusa, como num vidro cheio de microscópicas rachaduras, e o som se perdeu em algum lugar. Continuou falando, mas nem Seh nem Henderson ouviram.
Mas eles não precisavam ouvir para sorver as palavras.
Eu não deveria estar fazendo isso, pensava Seh. Seu peito tremia de excitação, e num olhar rápido viu que Henderson sentia o mesmo. Nós não deveríamos estar fazendo isso. Pensa na Callíope. Pensa no que aconteceu. Ele inspirou devagar, tanto e com tamanha intensidade que os dois invasores recuaram, defensivos. Mas era só uma inspiração. Quando abriu os olhos, Lerseh estava plácido.
— Escutem — ele começou, abrindo os punhos. — Eu e Henderson, nós somos... Nós não estamos aqui para atrapalhá-los. Não vamos intervir. Façam o que bem entenderem.
— Da mesma forma que não intervieram com Kik? — A voz da sombra, Aere, espalhou-se pelo branco como piche, manchando a existência. — Eu não sei o que Rocan planejou para vocês, mas nós não vamos mais suportar os jogos dele. O que ele começou antes de descer à Terra termina hoje.
— Quem é Rocan? — perguntou Henderson, virando-se para Seh. Falara num tom casual, mas os braços continuaram tensos. Calma, Henderson. Por tudo que há, calma.
Mas só de sentir a empolgação de Henderson o sangue de Seh esquentou mais uma vez. Do que será que aqueles dois eram capazes? Até onde chegava a habilidade dos maiores do mundo? Ele queria saber. Daria muito para saber. Seriam capazes de desafiá-los? Ninguém desafiava Lerseh desde... Desde...
— Ele fala a verdade — disse Hol, o sem forma. — Eu lhe disse, Aere. Vocês superestimam Rocan. Isso não é só coisa dele. Alguém o fez fazer o que fez. — A presença deste se espalhou mais uma vez, tomando uma porção do branco do tamanho de um ser humano. Do tamanho de um elefante, de um prédio, de um lago... Do tamanho da lua. — Foram vocês, não foram? — A voz criava rachaduras no branco, por onde escapavam as garras escuras da não-existência. — Vocês estavam aqui desde o começo. Vocês são poderosos o suficiente para mentir ante à Verdade de Aere, e ainda assim foram omissos o suficiente para passarem despercebidos por nós por tantos anos.
Seh e Henderson ficaram calados. Podiam tentar convencer Hol de que ele estava errado, de que a Verdade funcionara, mas qual era a chance disso dar certo? Seh sugeriu isso corporalmente, de uma forma que só Henderson compreenderia, e ele respondeu, numa sequência de gestos sutis que podiam ser vistos como cacoetes quaisquer: Espera que realmente acreditem que estamos falando a verdade? Que temos só vinte e poucos? A nossa história é muito mais improvável que isso.
Aere continuava:
— Se querem nos destruir aos poucos, inserindo a garota para tirar Rocan de seu bom senso, destruindo nossos iniciados com os seus... Pelo menos façam isso de forma digna. Enfrentem-nos sem truques. Mente contra mente.
Seh simulou vários cenários pela mente. Sabia que prever o futuro daquela forma era fútil, mas estava tão cheio de confiança que não conseguia levar o próprio conselho a sério. Sabia que se conversasse com eles conseguiria convencê-los da verdade. Poderia mostrar-lhes verdades que não eram deste mundo, e prevenir aquele embate sem propósito.
Poderia mostrar-lhes verdades que não eram deste mundo, e testá-las pela primeira vez.
De todos os cenários possíveis, o único totalmente imprevisível era aquele onde eles enfrentavam os invasores.
Pensou em Callíope, e no que vira nela logo no início. A força de vontade, a ânsia... Dissera a ela que entendia aquilo muito bem, mas só agora realmente entendia. Só agora tinha, mais uma vez, aquilo na pele. Repetia vários conhecimentos como mantras, puxando alguns dos cantos mais esquecidos da mente, mas não conseguiu se acalmar. Ele conseguiria segurar sua empolgação se quisesse...
Mas não queria.
— O que nos... — começou Hol, mas não teve tempo de terminar. O branco ficou rubro.
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Princípios do Nada
Gizem / GerilimE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...