Callíope (I)

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Do topo da cidade, Seh observava. Achara um ponto especialmente alto e dramático e instalara-se ali há algumas horas, o rosto sereno acariciado pelo vento morno e caótico da noite na capital. A brisa trazia tantas memórias, tanta saudade, que ele cogitou, de novo, tornar-se vento. Mas demoraria demais. Perderia noção da realidade, e, antes de perceber, anos teriam se passado. O primeiro semestre do curso de Física começaria dali a seis meses, e impressionava muito uma parte dele saber que realmente considerava voltar e entrar na faculdade.

Com a mente aberta, o mundo era um lugar imensamente interessante. Lembrava-se do êxtase que o dominou nas primeiras semanas, quando percebeu isso de verdade, não da forma como antes julgava saber. As possibilidades eram tantas que teve dores de cabeça, e mergulhou no mar mais profundo que encontrou, meditando, acalmando os espíritos. Havia muito a acalmar.

Desde que saltou da sacada na casa do lago, há um mês, fez muita coisa. Viu muitos lugares, conheceu muitas pessoas, entendeu muita história. Ainda tinha diversos planos, mas por ora voltara à capital, redescobrindo quão fascinante ela era. Mas não era só por isso que estava ali. A capital era muito próxima da sua cidade natal. Podia voltar, nem que fosse só por um instante, e ver os amigos. Contar tudo a eles, mostrar a eles, fazer de suas vidas mais interessantes, quem sabe ensiná-los...

— Não! — ele sussurrou, trincando os dentes. — Não intervir.

As palavras saíram fracas, sem convicção.

Seh tinha ciência da guerra sendo travada dentro dele: a guerra entre o Seh adolescente, agora com os melhores brinquedos do mundo, os meios de realizar todos os seus desejos... E o Seh dos Picos, que não via prazer ou realização em nenhum deles. Mas isso não significava que essa segunda parte não entendia ambição. Entendia bem demais, até.

Ele sacudiu a cabeça, limpando os pensamentos. Era prudente manter essas últimas vontades presas até que conseguisse controlá-las, mesmo que isso significasse ceder um pouco aos seus desejos adolescentes, como fez na sacada, com Alesia...

A juventude, ah, a juventude. Talvez fosse desonesto culpá-la por seus erros, mas a distinção era tão clara. A voz do Seh que foi e voltou dos Picos era um sussurro entre os gritos juvenis do Seh de vinte anos. O único momento que ouviu a razão foi na sacada, com Alesia, ao mesmo tempo um dos momentos de maior superação de toda a sua vida e o instante em que seu lado sábio foi incisivo o suficiente para fazê-lo dar o fora.

A atração... Não, essa não é a palavra certa. O fascínio que Alesia desenvolveu por ele o intrigava. Será que ele não percebeu antes por ser um adolescente idiota, ou realmente só surgiu nos últimos meses? Será que era relacionado ao que ele se tornou, que a garota captou de alguma forma? Esperava isso de Cella, não de Alesia, ironicamente tão mundana apesar de seu ego inflado. Talvez Alie tivesse sentido o que ele passava pela proximidade dela com Cella, um tipo de... O termo passou pela mente de Seh, um conceito que simplesmente não existia naquela cultura. Talvez "osmose" fosse adequado, embora limitado.

Isso era possível? A mera proximidade com Cella dando a Alesia uma pitada do dom da amiga? Entendia Alie se interessando pela maturidade dele, mas aquele fascínio, tão repentino, não podia ser natural. Se isso pudesse acontecer... Será que a simples presença dele, o tempo todo próximo dos amigos, já teria os afetado de alguma forma? Tarde demais para pensar nisso; com sorte a distância resolveria qualquer problema, principalmente enquanto os outros não percebiam sua ausência. Revendo o que fez, soube que poderia ficar meses fora, anos até, sem ninguém notar. Podia passar o resto da vida fora. Os amigos viveriam vidas tranquilas, normais, junto com o resto da humanidade...

Ou ele podia intervir. Era seu dever, certo? Ele tinha o poder para diminuir o sofrimento do mundo. Poderia ajudá-los. Era uma época promissora, a ciência fascinante, tecnologia acelerando a ritmos incríveis... Com sua ajuda, até onde a humanidade chegaria?

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