Von demorou para admitir o que estava realmente procurando. Depois da última semana de provas, quando ele, ainda imerso nos Picos, basicamente entregou folhas em branco aos professores, ele caminhou por horas, chegando até o posto de gasolina no limite da cidade. Achou um caminhão que estava indo pro Sul e entrou na carreta. Foram alguns dias de viagem, pegando caronas entre caminhoneiros que de início ele fez o ignorarem, mas depois começou a simplesmente pedir. A maioria não se importava em levá-lo.
Mesmo sem saber para onde ir, quis sair da cidade. O que faria nas férias se continuasse lá? Não conseguia olhar para Lena sem pensar em contar a ela. Não conseguiria conversar a respeito com Alesia, não depois do primeiro incidente com a neblina. E Art... Von sabia que isso ia acontecer algum dia, não sabia? Ele e Art eram muito diferentes. Algum dia a índole dos dois ia bater de frente, e eles teriam que deixar de ser amigos. Só não esperava que fosse tão drástico.
Não conhecia o sul do país, uma área rural pouco povoada, e as horas na estrada de terra agitavam a sua imaginação. Ouvia falar da região no rádio e nos livros, tinha alguma lembrança das aulas de geografia, mas se fosse ser sincero a respeito teria que admitir que não tinha ideia do que esperar. O que queria era ver a imagem dos Picos. Era possível: Lena viajava para lá, ou pelo menos viajou uma vez, algo assim. Aquele lugar que ele e Art visitaram enquanto mexiam no subconsciente (ou no consciente? O pensamento o aterrorizava) da amiga poderia ter surgido de alguma memória.
Nos Picos talvez atingiria aquele estado simples e calmo que atingiu enquanto viajou sozinho, depois da "morte" de Art. Lembrava-se bem da sensação: uma leveza, uma união. Se tivesse ficado mais alguns dias lá, quem sabe nem a descoberta de que Art estava vivo teria feito diferença no seu estado de espírito. Nada teria feito diferença. Nada poderia atingi-lo.
Avistou um buraco entre as árvores que cercavam a estrada de terra e fez o caminhão parar. Desceu da carreta, indo observar o motorista parado ao volante, totalmente à mercê dele. Parecia um boneco, congelado, olhos arregalados e aterrorizados. Von suspirou, tirando aquelas memórias da mente do homem e jogando algumas notas amassadas no banco do carona. O caminhão disparou pela estrada e o jovem entrou na mata, seguindo uma trilha gasta.
O caminho era curto, e com alguns minutos de caminhada as árvores começavam a se afastar, abrindo terreno como se para mostrar melhor aonde ele tinha chegado. O Sul não tinha picos: tinha montes. Pequenas montanhas irregulares, totalmente cobertas de árvores volumosas, subindo e descendo até onde a vista alcançava. O vento dançava entre os galhos úmidos, fazendo das folhas um chocalho, trazendo o aroma fresco de terra intocada. Von fechou os olhos, e não sentiu ninguém num raio de quilômetros. Deixara a civilização há muito, na estrada de terra que o caminhoneiro não teria entrado se não fosse a sua sugestão.
Não havia fé de ninguém ali. Era como a casa do lago, mas ainda mais isolado, ainda melhor. Sentia a vida à sua volta, crescendo e prosperando mesmo sem a civilização. Quem sabe ali conseguiria reproduzir tudo que fez nos Picos.
Quem sabe ali conseguiria compreender o que se passou na mente de Art. Ficara embriagado pelo vermelho e negro? Von sacudiu a cabeça, fazendo uma careta. Não podia justificar o que Art fizera. Foi errado. Não podia perdoá-lo até ele, no mínimo, perceber isso.
Pela primeira vez em sabe-se lá quantos anos Von estava sozinho nas férias, e não se sentiu especialmente mal por isso. Ali tinha todo o tempo do mundo para resolver o que tinha na mente.
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Princípios do Nada
Misterio / SuspensoE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...