— Bom, a verdade sobre o que Siman achava de mim eu descobri agora. Mais do que eu queria saber... Mas você sempre sabe, entende? No fundo... Bem no fundo você sabe que não é de verdade, mas você quer que seja, e...
Trevor segurou o riso. De todas as coisas que esperava para o final daquela noite, uma sessão de terapia parecera talvez tão provável quanto uma visita de elefantes voadores. Jo estava cansada e frustrada, ele entendia. Fora um dia difícil.
Os dois caminhavam pela universidade, seguindo os rastros vagos que Trevor sentia de Cella. Quando Erm foi embora, sobrou pouco para os Mantos da Capital fazerem. Cennen parecia satisfeito com o resultado do encontro, mas Gaen ainda estava tenso. Dissera que era estranho Erm não ter ido atrás de Von imediatamente. Quem sabe outros Grão-Mestres viriam.
Trevor se despediu dos Mantos e saiu atrás de Cella, preocupado, obstinado. Jo parecera levemente entediada, e se ofereceu para acompanhá-lo. Ele hesitou, sem entender por que ela fazia isso, mas quando ela perguntou como ele pretendia chegar à universidade percebeu que seria útil tê-la por perto.
Jo erguera a mão e logo um ônibus veio buscá-los, o piloto parecendo uma marionete. Chegaram rápido, e caminharam pelo campus por um bom tempo, Jo meio falando sozinha, meio conversando com ele. Trevor não ouvia direito. Cella estava ali, em algum lugar.
Cella, sozinha naquela noite bizarra... Ele olhou para o relógio de pulso, mas, em seu estado de preocupação, a única informação que tirou dele era que era muito tarde. Madrugada de sábado pra domingo. Domingo, de novo.
Sete dias atrás, umas poucas horas a mais, ele entrava na menor livraria do centro e gaguejava ao perceber que a atendente era mais bonita do que ele estivera esperando. Na época ele achou que os outros ririam dele, aquela seria a piada do grupo por uns tempos, e nada mais. Sequer abriu o pacote do Livro, que ficou fechado em cima de sua escrivaninha por uma noite inteira. Será que ele tinha alguma ideia do quanto aquele ato mudaria a vida de todos?
Trevor riu, ignorando o que Jo dizia.
Claro que não. A vida de todos já tinha mudado antes. Em algum momento tudo aquilo teria acontecido, por um motivo ou outro; o Livro foi só um estopim. O Livro não fez Art, Alesia, Lena e Von terem encontrado o tal Merriam. Não fez Seh ter ensinado ele e Von.
— A Callíope nunca deu muita bola pra ele, então... — Jo parou de falar, erguendo a cabeça, atenta. — Você ouviu isso? Pareceu um grito. — Ela olhou na direção do bosque. — Veio dali, eu acho.
Eles adentraram o bosque, Jo fazendo o entorno deles mais claro mas sem uma fonte de luz perceptível. Os pássaros estavam quietos, algo raro, e eles não viram nenhum dos habituais cães de rua que costumavam dormir por ali. O bosque cheirava a folhas úmidas.
Jo parou. Trevor se chocou com ela, agarrando os óculos enquanto estes caíam, mas a moça nem pareceu notar.
— Tem alguém ali na frente, no chão — ela sussurrou.
Trevor ajeitou os óculos na face, fazendo uma careta, olhando por cima do ombro dela. Nem precisaria dos óculos para reconhecer a figura deitada.
— Cella — ele sussurrou, empurrando Jo para o lado e correndo na direção da amiga, caindo de joelhos ao seu lado. — Cella! Tá me ouvindo? — ele repetiu, sacudindo os ombros da garota. Ela tinha os olhos fechados, mas respirava.
— Ela tá viva — disse Jo, chegando mais perto. — Era ela que você tava procurando? Deve ter apagado com o ataque que o Von segurou, normal.
Jo se abaixou ao lado de Trevor, fazendo um pouco de luz mais direta. Se Cella estava dormindo, tinha pesadelos. O rosto estava retorcido numa expressão de dor profunda, chorando lágrimas que já escorriam pelas suas têmporas há algum tempo.
— Lena... — O sussurro foi tão fino que Trevor segurou a respiração, decidindo se aquilo foi real ou imaginação.
— Tem alguém mais pra frente — disse Jo, logo antes dos sons.
Trevor não deu atenção. Seh tinha lhe ensinado algo relacionado a cura? Ele tentou se lembrar, apertando os olhos com força, mas o som o distraía.
— Cara! — chiou Jo. — Tem alguma merda grande acontecendo! Precisamos fazer alguma coisa!
— Ah, agora você liga? — ele disse, sem olhar para ela. — Quando o Erm sugeriu que iam matar o Art e o Von, vocês não fizeram nada.
— Não é bem isso, você sabe! A gente não tinha escolha!
— Claro — ele disse, lembrando-se de um truque de Seh. Colocou a mão na bochecha de Cella e a expressão dela se amenizou.
— Como... — Jo grunhiu, levantando-se, caminhando em círculos. — Trevor, qual é! A gente precisa ver! Eu não vou deixar você aqui sozinho, vem comigo!
Trevor não respondeu. Nunca vira Cella sofrendo antes, e tudo que queria era tirá-la dali.
— Lena... — sussurrou Cella mais uma vez. Mesmo naquela situação, ela só pensava nos outros.
— Trevor, foi mal, mas você vem comigo sim — disse Jo, e, sem aviso, Trevor pôs-se de pé, carregando Cella. Ele se sentiu estranho, querendo ficar irritado mas não conseguindo.
Não tiveram que caminhar muito para avistar a pequena muralha de pedras. Em seu centro, uma figura estava de pé.
Quando Trevor viu Art o resto do mundo perdeu o foco.
Estavam longe, mas não havia dúvidas: era Art. Art fazendo algo tão inacreditável que até Rocan estava boquiaberto. Art brilhando sem luz. Art exercendo uma presença tão grande que a Consequência caía sobre ele e não conseguia atingi-lo.
A Consequência chovia pelo bosque, chicoteando as árvores, rachando o chão, criando clarões e escuros e vazios e estrelas e feixes e coisas que queimavam a mente de Trevor. E, ao centro de tudo, intocado, Art.
Cella gritou.
— Isso é... — Jo falava ao lado dele, os dois escondidos atrás de uma árvore. — Eu nem sabia que isso...
Até a Consequência não parecia grande coisa quando comparada ao que Art fazia. Só de olhar para ele, Trevor sentia a realidade perdendo o propósito.
Rocan caiu no chão, o corpo flácido, e Jo também. Trevor sentiu o mundo escurecer.
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Princípios do Nada
Misterio / SuspensoE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...