Capítulo 9: Confiança (II)

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Alesia abriu os olhos e encarou a brancura e o silêncio. Branco desbotado, como a tinta de uma parede velha. Parecia a neblina de uma noite fria, espalhada como manteiga na superfície da existência. Sentia o chão abaixo de seus pés, mas fora isso tinha a impressão de que voava no nada. Inspirou o branco e sentiu-se estranhamente relaxada. Tateou o corpo, os músculos fracos e doloridos, e surpreendeu-se por estar vestida.

— Sempre imaginei que as roupas não iam com a gente depois que a gente morre — ela se viu dizendo. Não havia motivo para desespero. A onda que a atingira enquanto esperava Art no meio da avenida era forte demais para ela. Sentira as lanças negras se aproximando e nem soube como reagir. Era a morte sem choro ou sentimento. Não a morte dramática que ela via para si, mas a morte de um inseto qualquer. Sentiu as lágrimas vindo, mas as engoliu.

— Elas não vão — disse uma voz próxima. — Oi Alesia.

A garota se virou para trás e viu uma figura caminhando na direção dela. Era da altura de Von, quem sabe alguns dedos mais alto, e definitivamente mais forte. Tinha o cabelo castanho escuro, mais escuro que o de Art mas não tão escuro quanto o de Von. Usava um penteado estranho que ela nunca vira, que ao mesmo tempo parecia totalmente natural e muito bem preparado. Usava roupas simples, uma calça de lã acinzentada, uma espécie de camisa sem botões, branca. Estava descalço. Sorria um sorriso de fim de tarde.

— ...Oi — disse Alesia. — Seh.

Demorou a reconhecer o rosto. Era diferente, algo no jeito que os músculos se tensionavam com o sorriso, algo na profundidade dos olhos. Não era o Seh de segunda feira, na reunião. Era o Seh que a beijara na casa do lago, antes de sumir por um ano.

— O que aconteceu? Eu morri?

— Não. O ataque te pegou de surpresa. Você desmaiou instantes antes do Von defender a cidade. Aí eu te trouxe pra cá. Senta, vamos conversar.

Ele tirou os pés do chão e se sentou no nada. Alesia inicialmente ficou com medo de imitá-lo e cair (cair onde, exatamente?) mas, quando tirou os pés do chão, viu que tudo que a mantinha em pé era só essa ideia. Seh tirou um cachimbo dentro da camisa (podia ser chamada de túnica?) e tragou longamente.

— Onde a gente tá? — disse Alesia, olhando para os lados. Quando Seh também olhou, ela sorriu pela sua pequena manipulação e fixou os olhos nele. Na mandíbula bem formada, o contorno do rosto, os lábios... Ah, como ela pensara nisso. Como ela esforçara-se para não pensar. Mas agora, lembrando-se do que estava pensando por último, antes da onda vir...

— Isto aqui é meu — ele disse. — É uma pequena e malfeita cópia de um dos lugares agradáveis que encontrei em minhas viagens. Venho aqui para pensar. É calmo.

Alesia abriu a boca, preparando uma resposta pronta e fútil para aquilo, mas preferiu ficar quieta. Aquele encontro trazia uma série de emoções que ela mantinha bem trancada, e, combinado com os eventos recentes, a mente da garota parecia ter desistido de ficar confusa e só se conformou calmamente com a realidade.

— Eu não ia falar com você — disse Seh, olhos fixos no nada que os cercava. — Eu ia só ir embora. Falei com a Cella e com Von, com Trevor também, mas não ia falar com você.

— Você ia... Embora? — Ia; não mais. Culpa de Art, do Livro.

— Vou. A vida de faculdade, o grupo de estudos... Tudo isso me foi muito querido. Amei todos vocês mais do que eu poderia ter admitido sem me sentir constrangido. Mas não sou mais o mesmo. Desde que encontrei Henderson, numa tarde qualquer no centro, a minha vida voltou ao que deveria ser. E, desde então, eu soube que em algum momento teria que ir embora.

— Henderson, ele... Te ensinou? Abriu sua mente?

— Não. Sim, talvez, mas não daquela vez. Não no centro, quando o vi pela primeira vez.

— O que aconteceu então? Você... — A Seh ela teria falado de forma franca, talvez soltado um ou dois palavrões, mas não ali. Não com aquele Seh. Temia... Temia o quê, exatamente? A expressão plácida dele? O que ele diria a seguir?

— Naquela primeira vez... Eu o reconheci.

— Mas você não disse que foi a primeira... — Alesia franziu o cenho.

— Foi. Foi a primeira vez que o vi desde que nasci. E, ainda assim, o reconheci de antes, e de antes ainda. O reconheci uma dezena de vezes.

Seh suspirou, soltando a fumaça, que dançou pelo branco e desapareceu.

— Eu e Henderson somos uma discrepância. Uma pedra acidental no fino balanço do mundo. Um problema.


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