Capítulo 3: Os Picos (XVII)

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Quando Von voltou ao vermelho e negro a primeira coisa que sentiu foi a falta de peso. Ficou dias, talvez meses, preparando a ida até ali, mas depois de chegar sentiu que podia voltar num estalar de dedos. Era mais fácil até que nos Picos. Por isso Art escolhera aquele lugar?

As palavras trêmulas de Lena ainda corriam pela sua cabeça. Podia realmente chamar a garota que encontrara assim? Em um aspecto era, mas não totalmente. Von fechou a cara, numa expressão de dor.

O vermelho e negro estava, à primeira vista, igual. As cores eram como ele se lembrava, e o som também, aquele ruído distante, meio apagado, indistinto. Mas o diabo está nos detalhes. Havia mais das torres metálicas, flutuando no espaço da mesma forma que ele. Agora elas eram ligadas por uma série de fios, tecendo uma teia caótica e feia em todo o espaço, como postes de luz mal planejados.

Com o precedente de Von, Art aprendeu a criar matéria. E, com isso, criou o que quer que fosse aquilo. Talvez nem ele próprio soubesse ao certo. Não. Art sempre tem um plano. Será que ele queria só entender como entraram ali, ou era algo a mais?

E eu costumava confiar em você, Art. Mesmo com a nossa rixa, eu confiava.

Von foi (caminhou no nada? Flutuou? Voou?) até uma das torres e passou os dedos por sua superfície irregular, sentindo sua mão dura e velha. Um instante depois a pele amoleceu, rejuvenesceu. Em um piscar de olhos ele estava vestido de novo, jeans azul, tênis apertados, camisa branca e a melhor réplica que conseguia fazer da sua jaqueta de couro. Passou a mão no queixo e a barba se inflamou, completamente consumida pelas chamas num instante. Penteou o cabelo com as mãos e sentiu-o regredir, enegrecer.

Um lado dele temia Art. Von não tinha ideia do que o amigo poderia ter na manga. Criara aquelas torres sabe-se lá para que, e descobrira como chegar ali muito cedo. Até onde ia sua habilidade?

— Voltou rápido — disse Art, de algum lugar próximo.

Ao ouvir a voz, o medo se foi. Ansiava por aquilo. O confronto inegável entre os dois, desde que Von percebeu onde estavam, desde que Art fingiu sua morte, desde que Von desfez a neblina, desde que os dois aprenderam com Merriam, desde a prova do vestibular, desde que Art anunciou que faria Física, desde que Alesia entrou para o grupo, desde que Cella entrou para o grupo, desde que Von quebrou o nariz de Art num jogo de queimada, desde que Art derrubou Von na caixa de areia do parquinho, desde que trocaram olhares sérios pela primeira vez.

— E aí Art — disse Von, soltando seu sorriso convencido. Art não teve tempo para reagir.

Chovia nos Picos. Chuva forte, de trovões, maior do que qualquer tempestade que os dois já tinham visto.

— Von! — gritou Art, levantando-se com dificuldade, já encharcado. — O que você fez?

— Você realmente achou que eu ia te deixar ficar lá? Nas suas torres? — Von sentia a água penetrando no cabelo espetado e escorrendo pela face, e não fazia nada a respeito. Sentia-se bem.

Art fechou os olhos e tentou voltar ao vermelho e negro. Ele saltou, o corpo piscando, mas Von não permitiu. Art caiu de novo no chão, escorregando na grama.

— O que você tá fazendo? Eu preciso voltar! Você voltou muito rápido! Eu tava terminando...

— Voltar? — começou Von, mas desistiu. Discutir passagem de tempo era fútil. — Você não vai voltar. Precisamos bater um papo.

Art riu, virando-se para ele, contorcido no chão como uma serpente.

— Não vou?

Antes que Von pudesse responder Art tentou sair brutalmente, tão agressivo que Von sentiu dor física ao pará-lo. Tentava vencer o bloqueio à força, e era eficiente. Von dobrou seus esforços, mas nem fez cócegas. Art era muito melhor do que ele.

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