Consequência (II)

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Poucas vezes a casa do lago esteve tão quieta. Mal passava das oito e já era tudo silêncio, todos ressonando baixinho, Art dormindo de boca aberta no sofá da sala, Lena e Von em suas camas, um quarto para cada.

Se Von não respirasse, um bom legista facilmente declararia que estava morto. A pele era pálida, fria e rígida, e o coração batia uma só vez a cada minuto. Os níveis de atividade cerebral e metabólica eram baixíssimos. Seria um caso interessante de estudo, algum jornalista sensacionalista poderia chamá-lo de morto-vivo, mas ninguém o veria daquela forma. No ritmo que estava, de manhã estaria novo em folha, e sairia da cama mal percebendo que esteve à beira da morte por horas.

Uma brisa soprava suave pelo quarto, levantando as cortinas e desarrumando ainda mais o cabelo de Von. O quarto tinha uma varanda pequena, cuja porta de correr deixava a luz e o vento entrarem. A cortina avançou, cobrindo a porta, e, quando recuou, a varanda não estava mais vazia.

— Von, Von... — disse Seh, caminhando sem som. — O que você fez?

Seh levou a cadeira do canto do quarto até a frente da cama, mas não se sentou. Não havia ninguém lá para atestar, mas algo estava diferente nele. Podia ser o cabelo, as roupas, talvez a expressão... Mas se Von acordasse naquele momento e olhasse para o lado, demoraria para reconhecer o amigo.

— Se você tivesse lembrado do que eu falei, isso não teria acontecido. — A voz vinha calma, mas os olhos estavam fixos e distantes, cheios de dor. — Nunca me acostumo com isso. Não importa quantas vezes... Um jovem é sempre um jovem, independente do que sabe. — Ele sorriu. — Henderson não ia concordar com isso, e acho que nem eu ia, mas tem certas coisas que não consigo ignorar.

Caminhou em círculos, os pés descalços sempre silenciosos junto ao piso de madeira, e se sentou na cadeira. Queria que Trevor estivesse com aqueles quatro quando Merriam apareceu. Trevor teria mais bom senso, como teve antes.

Seh suspirou, reclinando-se na cadeira e olhando para o teto. A ambição de Von não era simples de se identificar: era escondida, quieta, perigosa. Merriam não deu a ela a atenção que merecia, se chegou a percebê-la. Mas, lembrando do homem, concluiu que não era tão mau. Ensinou os caminhos fáceis aos quatro, mas não os limitou a eles. Deu uma noção ampla mas ponderada antes de desaparecer. Entre os tipos que costumavam ensinar, o dele era um dos menos nocivos. Seh tinha coisas mais importantes a fazer, mas muitas vezes acabava observando os amigos com algum pedaço da mente. Preocupava-se com eles.

Apagar memórias lógicas era fácil. Apagar ensinamentos e emoções, entretanto, era quase impossível. Misturavam-se com a essência da pessoa, moldando-a, definindo-a. O bolo da sua avó fica com você, mesmo que você esqueça o gosto. Se Seh quisesse realmente ter apagado o tempo que passou com Von e Trevor, teria que mexer com quem eles haviam se tornado, e não desejava isso. Mas agora, meses depois, percebia o quanto seus ensinamentos moldaram a vida dos dois.

Von tinha jeito para a coisa. Seh não vira isso quando chamou ele e Trevor, numa noite qualquer, para tirá-los da vida mundana. Chamou Trevor pela sua calma, paciência e observação, secretamente esperando que daria um grande aprendiz. Chamou Von por sua força de vontade, sua paixão e seu senso de moral, mas uma parte de Seh, a parte mais sábia, sabia que quis ensiná-lo só por serem bons amigos. Mas ensinar os dois era perigoso demais. O tempo que passou sendo ele mesmo com os velhos amigos foi bom, mas teve que acabar. Teve que tirar aquele tempo deles.

E mesmo assim a influência de Seh ainda vivia em Von. Influência que quase causou a morte de Alesia, quando Von teve um lapso de memória; que quase causou a morte de Von, horas antes, de uma das formas mais terríveis existentes. Seh deveria ter tomado uma atitude mais severa depois do primeiro incidente, mas achou que Von tinha aprendido a lição. Pareceu que tinha: até desfez a neblina! Mas depois partiu pra cima de Art com tanto ódio... Seh não entendeu de onde veio aquela reação desproporcional. Seu clímax veio sem prólogo.

— Talvez isso seja tolo de minha parte — disse Seh, levantando-se. — Mas não consigo deixar de pensar que o que aconteceu com você foi, em parte, culpa minha. Também por eu ter ignorado o Art por tanto tempo... Fui injusto com ele. Então, ofereço a vocês dois a melhor coisa que já dei a alguém em vida. — Aproximou-se, encostando a palma da mão na testa e um dedo no coração de Von. — Mais uma chance ante à Consequência. Espero que não a desperdicem.

A porta se abriu sem ranger, e Lena entrou, esfregando os olhos.

— Von? — ela disse, caminhando até a cama. Usava um pijama comprido, e o cabelo muito negro escorria pelas suas costas. — Achei que tinha ouvido alguém...

A garota olhou em volta, os olhos semicerrados de quem despertara há pouco, e hesitou antes de sentar na cadeira vazia. Von respirava aos poucos, em câmera lenta. Claramente não estivera falando em nenhum passado próximo.

— Acho que você ainda vai demorar pra acordar — disse a garota, quase sussurrando, coçando o cabelo. — Mas enfim, eu...

Lena ficou vermelha, o rubor brotando nas suas bochechas brancas como uma chama tímida, contida. Ela se inclinou em direção à cama, tremendo, respirando com força. Olhou a face de Von longamente, a centímetros dela, e o beijou nos lábios.

— Obrigada.

Saiu do cômodo como entrou, encostando a porta com cuidado. Pouco depois ela dormia.

Seh surgiu da sombra.

— Hã. Engraçado — ele disse, novamente se sentando de frente a Von. — Obrigada pelo quê?

Por ter sumido com a neblina? Parecia a única coisa a ser agradecida. Por todo o resto, ela podia muito bem ter lhe dado um tapa. Seh levantou-se da cadeira, coçando o queixo, e deixou escapar um riso baixo antes de desaparecer.


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E assim termina o interlúdio da Consequência! Obrigado pela leitura! A seguir, iniciamos o quarto capítulo: Viagem de Negócios. Afinal, quem que Von encontrou perto da casa do lago?

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