Para alguém presumivelmente tão poderoso quanto Rocan, Seh achou sua aparência bastante mundana. Era um homem de meia idade, com cara de sessenta e poucos, rugas de expressão fundas na face, cabelo ralo, dentes amarelados. Usava uma calça desbotada de veludo, uma camisa social sem graça e um colete de lã. Não estivesse descalço, teria feito Seh acreditar que podia ser um dos seus tios-avôs. Se um leigo olhasse para ele, ao lado de Kik, concluiria imediatamente que o Grão-Mestre era claramente um amador. Kik brilhava ainda mais agora, os raios que formavam seu corpo chiando, azuis como o céu no limite do horizonte.
— Então é você — disse Rocan, aproximando-se devagar. O beco era largo o suficiente para acomodar os três, longo o suficiente para deixar a visão turva, afastado o suficiente para ampliar as palavras. — Kik não quer admitir, mas tenho certeza que a derrota dele foi fácil. Ele pode ser um exibicionista sem talento, mas infelizmente depois que Cennen se foi é o melhor aprendiz que tenho.
Callíope não falou. Seh vinha observando-a de longe desde que pararam de se falar, há algumas semanas. Logo depois do episódio no estádio, Siman apareceu oferecendo ajuda, seguido de Cennen. Eles organizaram os Mantos da Capital, construíram uma base, e elaboraram planos. Mas Callíope sabia que não estavam seguros. Temia o que Jo faria caso Kik retornasse. Tinha que resolver aquilo em segredo, e sozinha. Era ela que tinha desafiado a Presença, e só ela.
Seh sentia as emoções da moça. Não contava com a presença dele. Não sabia se sairia dali viva.
Não conseguiu olhar. Afastou os olhos o máximo que conseguiu, voltando para dentro do corpo, no lago, onde Trevor e Von praticavam sua última lição. Mesmo concentrados no que faziam, percebiam a inquietação dele.
— O que você tá fazendo, Seh? — perguntou Von. Esperava essa atenção de Trevor... Que tinha notado antes, mas não teve a iniciativa de perguntar.
Em sua ansiedade, Seh moldava o mundo. Os dedos dançavam uma valsa automática, pulsando, criando e apertando. Um minúsculo ponto preto flutuava entre as palmas, pequeno como uma bolinha de gude, pesado como a lua.
— Ah, isso... — ele olhou para o buraco, tão escuro que sugava a própria luz. — É meu presente de despedida. Físicos do mundo inteiro se matariam para ver isso como vocês estão vendo. Aproveitem.
Ele ergueu a mão, fazendo o buraco crescer, sugar mais ar, e até afrouxou as amarras que o seguravam no lugar, só para deixar os dois sentirem seu poder. Trevor e Von encaravam, pasmos, enquanto Seh preparava sua despedida. Não estava em condições de explicar aquilo a eles com palavras, então recorreu a coisas mais instintivas. Não que fizesse diferença; cinco minutos depois ele desfez o buraco e os dois foram embora, sem palavra, sem lembrança daqueles meses. Um final cruel, mas não tanto quanto...
Ele tinha que olhar. Mesmo com o perigo de não se aguentar e fazer algo, ele simplesmente tinha. Não era uma opção.
Olhou novamente para o beco, e sorriu. Callíope resistia a Rocan. Ele caminhava na direção dela mas em câmera lenta, como se o ar à sua volta fosse piche. Ela arfava, mas estava de pé. Seh sentiu o coração pulsar, a esperança real demais para ser despedaçada tão fácil. Ela resistia. Ela tinha uma chance.
— Não estou surpreso por você ter derrotado Kik — disse Rocan, abanando os braços como se caminhasse em baixo d'água e o movimento fosse ajudar. — É uma pena que você seja tão dogmática. Não leve isso pro lado pessoal.
Seh analisou a mente de Rocan... e a esperança se foi. Rocan era um gênio. Um mestre matemático, seus ataques precisos e limpos como cálculos, equações argumentando contra Callíope, convencendo seu cérebro a parar de funcionar. Brincava com ela. Seh, tomando cuidado redobrado para não ser percebido, sentia o que o Grão-Mestre pensava: queria segurar a mente de Callíope nas mãos, senti-la um pouco, estudá-la por um momento antes de destruí-la. Não estava interessado em demonstrações de poder, ou fins rápidos para sua tarefa. Passara do nível de se mostrar, como Kik fazia, mantendo a forma de raio enquanto observava. Rocan não precisava convencer ninguém de nada, e por isso mantinha a aparência cômoda de um velho qualquer.
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Princípios do Nada
Mystery / ThrillerE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...