Callíope (III)

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Nos momentos de lucidez, Seh comparava aquele outono com todos os outros e, mesmo percebendo que estava perdidamente cego, sabia que estava sendo o melhor de todos.

Quando não estava com Callíope, surpreendendo-se vez após vez com sua proficiência, estava com Trevor e Von, certificando-se de que eles entendiam o que lhes era ensinado, que eles seriam respeitosos, humildes e dignos. Começava até a pensar em ensinar outros, quem sabe Lena, Tom, Alesia...

Não foi olhar se Alesia já tinha se livrado do fascínio por ele, parcialmente por estar ocupado, parcialmente por medo do que iria encontrar. Quando soube do que aconteceu na formatura achou que era um bom sinal, mas então veio com aquela bobagem de dar um último desejo a ela e viu que estivera errado.

Olhando agora era tão claro. A simples presença dele já era uma influência no mundo. Não que isso o absolvesse de chutar o balde como estava fazendo, de forma alguma... Só o fazia pensar menos nisso. E quão fácil era pensar pouco.

Levara Callíope para jantar nas nuvens, tão alto que as luzes da cidade eram só pontos luminosos, cercando-os de estrelas por todos os lados. Levara-a aos mares mais profundos, os dois caminhando entre os maiores animais que havia, Seh tão maravilhado quanto ela. Invadiram festas de gala, premiações, jantares presidenciais, e tiveram papos engraçados com figuras que nunca mais pensariam neles. Escalaram montanhas descalços, os pés criando escadas no gelo imortal, atravessaram desertos de bicicleta, patinaram em alto-mar.

As lições eram só uma desculpa, Seh transformando o que queria ensinar em algum encontro extraordinário, na coisa mais incrível que sua imaginação permitia. Percebia, com certa vergonha, as coisas fúteis que fazia por ela: deixava o corpo mais alto, as feições mais maduras, a voz mais grossa... Seu lado adolescente era forte o suficiente para impor essas preocupações idiotas; de muitas formas, ela era quase quinze anos mais velha que ele.

Não parecia. Puxando uma imagem mental, daria a ela no máximo vinte e cinco, claramente mais velha que Alesia mas pouco, pouco o suficiente para a semelhança ser quase absoluta, a primeira da série de coincidências extraordinárias que o levaram até aquele momento. Tentou achar sentido na aparência dela, procurando algum laço de sangue, alguma sugestão subconsciente que estivera fazendo, mas quem sabe a vida só fosse um pouco brincalhona de vez em quando.

Sozinho na lua, Seh banhava-se com as lembranças dela.

— Eu não achei que você seria assim — ela disse uma vez, os dois deitados numa rede que ele fizera no meio da mata. — Desde que você apareceu na minha casa e me salvou eu achei que... Eu achei que você sumiria a qualquer momento. — A voz dela quebrou nesse momento, tentando esconder a fragilidade que ela não mostrava a mais ninguém, tão pura e sincera que Seh simplesmente não sabia o que fazer. — Eu achei que eu, pra você, era tão... Infantil... Que isso nunca aconteceria. Nós dois. — Ele sentia os dedos dela correndo pelo corpo dele, preguiçosos, tão mais relaxados que aquelas palavras.

Ela abriu os olhos naquele momento, intensos, cheios daquele tipo de felicidade séria, meio assustada, tão forte que os lábios se esquecem de como sorrir. E Seh soube, num incrível e aterrorizante momento, que faria qualquer coisa por ela.

A voz sábia já nem falava mais, sabendo que não teria efeito. Lógica alguma funcionaria. A voz suspirou, triste por ter que usar um truque tão sujo, mas sabia que era necessário.

— Eu te amo, Lerseh.

Não era a voz de Callíope. Não era uma voz, nem duas, nem dez. Era mais. Todas juntas, acompanhadas de imagens, de emoções, de situações. E do que veio depois.

Seh pôs-se de pé, arfando, os olhos arregalados voltando à realidade num baque violento. O coração batia tão forte que doía, incapaz de processar tudo que sentia. Coisa demais para um homem só.

— O que eu tô fazendo? — ele disse, a voz morrendo poucos metros à frente, onde acabava a atmosfera que ele criara. A lição do dia era como sobreviver naquele ambiente, como não respirar, controlar a pressão, ver sem os olhos... Mas não era só isso. Ele já tinha dado essa lição a outros antes, e nunca fora assim.

Seria na lua pela vista. Depois poderiam deitar e mirar as estrelas, ele projetando-as bem perto, no breu infinito. Callíope gostava de estrelas. Disse a Seh uma vez que foram elas que a fizeram ver, perceber que o universo era uma coisa muito inacreditável e sem sentido para ser tão lógica. Seh já imaginava a reação dela, o sorriso dando vez a um olhar concentrado, impressionado... Ele desviaria os olhos para ela nesses momentos, analisando a curva do rosto, as bochechas, os olhos... Podia até vê-la, dentro da mente. Ela era o céu coberto de estrelas. Era o amanhecer brotando entre as nuvens. A chuva no campo.

A voz sábia preparou-se para fazer seu truque de novo, mas desta vez não foi necessário. Tinha o controle. As coisas que Seh ensinaria sobre como sobreviver naquele ambiente eram bobas quando comparadas ao que ela já sabia fazer, mas, partindo daqueles conhecimentos, poderia ensiná-la coisas mais complexas, mais úteis... Seh sabia que ela não dormia, nem comia, nem se curvava à maioria das outras necessidades físicas dos seres humanos. Ele não concordava muito com isso, mas tinha tempo para convencê-la de quão bom era sentir a vida. Mas mesmo controlando o corpo a nível metabólico, ela não conseguia fazê-lo a nível molecular. Ainda envelhecia.

Seh sabia que vários daquele mundo sabiam rejuvenescer o corpo, inclusive Gaen, mas o método que ele ensinaria era diferente. Não era só não envelhecer. Era se tornar eterno.

— O que eu tô pensando... — disse Seh, caindo no chão lentamente, de costas. — Não se ensina alguém esse tipo de coisa, não alguém tão nova, tão imatura...

Callíope estava certa, não? Ele esteve prestes a sumir meia dúzia de vezes. Não, mais do que isso: antes de cada aula, depois de cada encontro, cada vez que ficava longe dela tempo o suficiente para esquecer, por um segundo que seja, seu rosto. Ela via a disputa nele. Via os dois que conviviam na mente de Lerseh, e não entendia. Talvez isso a fascinasse um pouco.

Mas qual era o problema? Desde que conheceu Seh, o que ela fez que influenciou o mundo de uma forma negativa?

A voz sábia tentou gritar nessa hora, perdendo a compostura, mas antes que conseguisse aqueles pensamentos falhos já se tornavam perfeitamente lógicos mais uma vez.

Qual o problema de ficar com ela? Quem sairia prejudicado? Por que ele não podia desfrutar daquilo? Seh levantou-se num salto, cenho franzido, quase com raiva. Esse afastamento era estúpido, sem propósito.

Ela estava com o grupo, os tais Mantos, naquele momento. Seh estivera observando, como sempre, pronto para reagir caso algo extraordinário acontecesse. Naquele dia iam se encontrar novamente com Cennen, ele se lembrou. Analisando um pouco o entorno, viu que algo não estava certo. Não soube de início o que era, mas foi uma sensação forte, dura. Seh ainda tinha muitas percepções complexas, vindas das partes dele que ele ainda não compreendia muito bem. Ainda assim, não era algo a ser ignorado. Dos Mantos, Klen era o mais novo, e o mais inexperiente. Mergulhou na mente dele, tomando o controle só por sugestão, sem ser agressivo, e tomou parte na conversa.


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