Capítulo 4: Viagem de Negócios (IV)

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Von se engasgou com a própria saliva e fechou a boca, saltando no lugar e despertando num susto. Art, ao seu lado, olhou-o brevemente antes de voltar ao livro que tinha no colo, alisando a capa verde e dourada. O sofá era grande o suficiente para acomodar os dois sem que eles tivessem que se tocar.

— Perdi alguma coisa? — disse Von, limpando a baba da boca.

— Nada. Ainda no ônibus, ainda lendo.

Havia uma amplíssima janela abobadada à frente dos dois, cobrindo a parede toda. Além dela, uma imagem extremamente vívida de um livro, e de mãos mexendo nele. Dava pra ver os arredores, pernas, uma poltrona, a janela do lado, mas tudo longe do centro estava fora de foco. Dos lados do sofá onde eles estavam sentados havia alto-falantes grandes, que produziam um ruído baixo e monotônico, como um motor.

— Eu... Dormi? — questionou Von, confuso. — Isso é possível?

— Acho que é. Quero dizer, sua mente se cansa também. A gente dormia nos Picos, não dormia?

Von olhou novamente para a janela à frente do sofá. Concluindo que nada emocionante aconteceria nos próximos minutos, voltou-se para Art.

— Me explica de novo. Isso aqui não é a mesma coisa de antes. De quando entramos... — As palavras vieram quase naturalmente, quase, mas Art percebeu o minúsculo segundo de hesitação. — Na cabeça da Lena?

— Não, nada a ver. A gente tá só de passageiro. Não temos acesso a nada fora a visão, na forma dessa tela aí, e da audição, na forma desses alto-falantes.

Na janela à frente deles, a mão do homem careca virava uma página. A imagem toda girou e se focou no punho dele, no relógio que usava. Dezoito horas.

— Você que fez isso? O sofá, a tela?

Não havia nada no cômodo fora essas quatro coisas: a tela/janela, cobrindo quase cento e oitenta graus em todas as direções, o sofá diretamente na frente dela, as caixas de som nas laterais e os dois jovens. O ambiente não parecia ter paredes: a luz saía da janela e se espalhava por um escuro indistinto. Von achou o cômodo parecido com um submarino que vira uma vez num documentário, e a ideia o excitou no começo, mas as horas no ônibus eram infernalmente chatas. Art contou que encontrou o apartamento de Henderson, mas depois que aquele assunto foi exaurido eles ficaram em silêncio, até o sono vencer Von.

— É que nem da outra vez. É o que a nossa cabeça interpreta disso aqui. Nós que criamos o espaço, ele não existe de verdade.

— Sei... Você nunca descobriu como entrar na cabeça de alguém daquela forma — afirmou Von.

Art não contestou. Estivera certo em uma coisa: entrar em alguém como os dois entraram em Lena foi um golpe de sorte inacreditável. Depois de conhecer Siman, nas férias, Von percebeu o quanto os dois estavam acima do adepto médio. Se entrar na mente de alguém e aprender fosse fácil, todos fariam. Fácil e sem consequências...

Von não tinha certeza, mas Art parecia achar que eles não fizeram nada demais. Na primeira noite, depois que eles voltaram, ele pareceu arrependido, mesmo dizendo que tinha olhado a cabeça de Lena e tudo estava no lugar. Depois das férias, no entanto, qualquer arrependimento morreu. Lena estava viva, certo? Não estava louca. Estava perfeitamente normal. Sem danos, sem consequências. Von não concordava, mas só por causa de uma intuição de que algo estava errado. A lógica era sólida.

— E o que é isso aí? — disse ele, apontando para o livro verde e dourado. Não era exatamente um desenho, mas a figura na capa se parecia com grama vista de cima.

— Ah... É um livro que achei, hã, numa biblioteca da Capital. Eu copiei ele pra minha cabeça, e daqui consigo ler.

Von se inclinou na direção da página aberta. Era coberta de símbolos pequenos, bem desenhados, parecendo alguma escrita oriental.

— De quem é esse diário? — disse ele, fazendo pipoca.

— Não sei, eu... — Art parou. — Diário?

— É um diário, não é? Aí ó, "depois daquele ano eu fui para as montanhas, e delas..." — começou Von, mas parou quando viu Art.

Art encarava Von com sangue nos olhos. Von tinha o costume de fazer aquelas brincadeiras bobas, mas ou ele se tornou algum profissional ou...

— O que foi?

— Você... — Vale a pena arriscar, pensou Art. — Você consegue ler isto aqui?

— Claro — disse Von, dando de ombros. — Todo mundo sabe isso aí, não? É aquele... Puta, qual o nome, o...

— Olha esses símbolos aqui, isso aqui não é nenhum alfabeto que exista — disse Art, apontando para alguns rabiscos no papel. Von mastigou a pipoca ruidosamente enquanto olhava. Reconhecia muito bem aquelas figuras, lia-as com a naturalidade e eficiência que lia qualquer outra escrita.

— Mas eu conheço isso aí — disse Von. Era tão claro, tão óbvio. Conhecia todos aqueles símbolos como a palma de sua mão, como as curvas em sua íris, como o seu cabelo, que penteava com a mão.

— Você viu o Seh recentemente? — disse Art.

— ...Como assim? — Von falava ainda olhando (lendo) a página aberta do livro, a boca meio cheia, uma das mãos congelada dentro do balde de pipoca. — A última vez que vi ele foi na reunião, segunda-feira. — Ele pareceu se lembrar que comia, e engoliu. As mãos continuavam estáticas.

— E nenhuma vez depois? — insistiu Art.

— Não.

Von tinha as defesas altas. Seria muito perigoso (afinal, era com Von que estava lidando) invadi-lo e verificar a verdade daquelas palavras. E realmente não precisava.

Uma das coisas que Art aprendeu com o livro de capa azul, o livro que realmente encontrara na capital, era um tipo de leitura superficial dos pensamentos. Mesmo sem entrar na cabeça da pessoa, conseguia ter uma sensação, uma ideia do que tinha na mente. O alvo não tinha como saber. Art acostumara-se a usar isso rotineiramente, e foi o que fez no começo da semana para se divertir às custas de Von, quando o colega quis lhe perguntar sobre as férias, por exemplo.

Art sentia o que Von pensava. Falava essencialmente a verdade, mas havia uma confusão... Processava aquela informação violentamente, e tinha cautela com suas palavras.

A luz mudou, e os dois olharam para a janela. O careca saiu do ônibus e caminhou, a visão em primeira pessoa dos seus passos oscilantes deixando-os tontos. Estava em um terminal cheio de gente. Os olhos corriam entre as placas, os rostos, o relógio no pulso, e pararam nas janelas. Os dois viram a noite lá fora, clara e barulhenta, os sons e luzes da cidade afastando o escuro. O careca estava cercado por uma multidão, pessoas de todos os tipos, mais gente do que eles estavam acostumados a ver, mesmo nas horas mais movimentadas do centro. Aquela visão certamente não pertencia à pequena cidade onde os corpos de Art e Von dormiam. Era a capital.

Os dois se inclinaram para a frente, os cotovelos nos joelhos e os olhos muito atentos à grande janela que ocupava metade da câmera escura.

— O Teatro Municipal, por favor. — A voz do careca veio pelos alto-falantes, seguida de um grunhido do motorista de táxi.

A conversa desapareceu. Eles não perderam um momento daquilo.


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