Lena se levantou devagar, tirando as folhas do cabelo. Desmaiara? Esteve tão ocupada preparando as coisas no círculo de pedras que não reagiu bem à onda que sentiu. De início pensou que eram os moles voltando aos seus corpos, mas percebeu, tarde demais, que era outra coisa. Pareceu perigoso, mas, avaliando o corpo e a mente, não encontrou nenhum dano. Curioso, mas não parecia ter a ver com ela. Logo antes de acordar achou que sentiu a presença de Von...
Não. Preciso me concentrar.
Preparar as coisas dentro da pequena muralha de pedra no bosque, onde ela costumava se encontrar com Alesia, foi mais fácil do que ela imaginara. Assim que era estar quase sozinha na cidade? Antes mudar o mundo era como correr com roupas de inverno, tão pesadas que cada gesto era um sacrifício. Agora era como se estivesse nua.
Fez alguns retoques rápidos, sem sentir diferença. O que quer que tivesse sentido, não trouxe os moles de volta. Saiu da muralha e caminhou entre as árvores altas do bosque sem o medo ou a ansiedade que achava que viria. O medo todo tinha se esvaído horas atrás, no centro, na praça.
Depois do evento no shopping continuaram seguindo Von e Trevor, ela e Alesia. Ou o que restara de Alesia: um corpo sonolento, que obedecia a qualquer ordem simples e não tinha a capacidade de manter memórias. Lena se sentia mal por seguir os dois depois do discurso que fez a Alie, mas não era hora de lamentar sua hipocrisia.
Von e Trevor chegaram na praça e encontraram uma terceira figura, que Lena não conseguiu ver direito. Ela se escondeu numa esquina, olhando de longe e captando o som que podia. Ouviu as palavras, decifrando-as, tomando cuidado para não ser notada. O tom da conversa era calmo: enquanto tentava convencer Alesia a ir embora, esperava algum tipo de embate, mas não sentiu agressividade nas palavras. Von pareceu discordar, levantando-se quando o tal Rocan falou algo sobre Art e os peões na universidade.
— Não com o braço machucado — disse Von. Lena piscou nessa hora, inocente.
Quando abriu os olhos havia uma pessoa a menos na praça. Seu sangue gelou. O homem, Rocan, falava como se fosse poderoso. Teria percebido ela bisbilhotando? Estaria atrás dela, as mãos prontas para arrancar seu cérebro? Em pânico, e sem tempo até para parar e pensar, ela tomou uma ação desesperada.
Na praça, Von olhava na direção dela. Lena mergulhou na mente dele, rápida, só para saber se ele via Rocan atrás dela. Pensou em todas as defesas possíveis que o amigo teria, pensando em contorná-las só por um segundo, só para ter certeza. Afiou o olhar, esperando encontrar uma parede de concreto, já se preparando para o impacto.
Não houve impacto. Tirou imagens e palavras com tamanha velocidade e violência que perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos. Sem resistência, a vazão foi demais para ela. Quando conseguiu processar tudo e se levantar, os dois já não estavam na praça. Rocan nunca esteve atrás dela; Rocan nunca se moveu. Foi Von quem desapareceu.
Lena caminhou mais depressa, estilhaçando as folhas secas do bosque entre seus pés miúdos. Foi fácil confundir Von com Rocan, afinal eles eram idênticos. Foi mais fácil ainda entrar na mente dele. Se tudo que ela tinha visto na cabeça de Rocan era verdade, ela não tinha muito a temer. Não tinha nada a temer. Caminhou um bocado, mas logo chegou a outro lugar conhecido. O clarão do bosque, coberto de tocos. Deu um passo para dentro e parou.
Lena cogitou a possibilidade de ser uma ilusão. Era óbvio demais Rocan estar lá, sentado num toco, sem proteção, sem tentar ocultar sua presença. Era uma armadilha? Depois da universidade subir e cair de novo, os traços de poder ali eram tão fortes que ocultariam qualquer arapuca elaborada. Um problema é só um problema se ele tem solução, ela pensou, conformada. Engoliu em seco e foi na direção dele.
Rocan não pareceu percebê-la. Era a primeira vez que Lena olhava bem para o homem; de longe, só vira traços gerais. Enquanto ele não notava sua presença, ela tomou um momento para olhá-lo.
Conhecia Von desde sempre. Vira seu rosto crescer, endurecer, os olhos perderem e reganharem o brilho uma centena de vezes. E, mesmo assim, só conseguia achar diferenças superficiais entre a face do amigo e a de Rocan. Eram praticamente idênticos. Mas isso não a impressionava; sabia exatamente porque Rocan era assim.
Rocan estava de olhos fechados, provavelmente observando o que acontecia na cidade. Lena parou na frente dele, desconfortável num nível social, sem saber como começar. Tossiu.
Rocan arregalou os olhos.
— Hã, olá — ela disse, sem graça.
O homem passou os olhos nela múltiplas vezes, examinando cada centímetro. Tinha um olhar confiante. Como sempre, Lena pensou. Esse olhar é tudo que mantém ele vivo.
— Eu, hã, quero completar o acordo que você propôs pros outros — disse Lena. — Vim te entregar o Livro.
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Obrigado pela leitura! Quarta-feira começa o capítulo 9: Confiança. E, se você curtiu, deixe um comentário! E dá uma olhada no meu site: http://oucoisaparecida.com.br/
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Princípios do Nada
Misteri / ThrillerE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...