Capítulo 7: Art e a Universidade (I)

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Art lançou o par de cartas na mesa de forma displicente, sem nem as olhar, deixando óbvio quão longe sua cabeça estava. Von espiou os números, comparou-os com as cartas que tinha na mão, e bufou. No começo culpou o escuro pelas derrotas, mas depois que Trevor arranjou mais velas não tinha desculpa. Recostou-se no sofá, enchendo os pulmões com o cheiro do couro novíssimo, e apostou mentalmente que Trevor demoraria mais de cinco minutos para perceber que era a vez dele.

Depois de fugir da universidade, o plano continuava o mesmo: se esconder e esperar. Já passava da meia noite, mas a ideia de dormir nem passou pelas mentes deles.

— Por que o supermercado? — perguntara Trevor, seu rosto flutuando na chama baixa do isqueiro de Von enquanto os dois tiravam uma dúzia de velas gordas das prateleiras.

O supermercado era uma construção larga e baixa, que vendia desde frutas a televisões, passando por móveis de qualidade duvidosa e pneus.

— O supermercado é o melhor esconderijo que temos — dissera Art. — Como só tem um desses num raio de quilômetros, é um dos lugares mais movimentados da cidade. Deve ser por isso que deixam ele aberto até de madrugada... E a descrença aqui é forte. No supermercado tudo faz sentido.

Àquilo Von só acenou. Levou os dois até ali por instinto: quando a biblioteca começou a virar, o supermercado foi o primeiro lugar seguro que lhe veio à mente. Embora acidental, realmente foi uma escolha inteligente. Mesmo com a facilidade que sentiram antes, havia um peso ali, uma mão invisível segurando a realidade no lugar, ao mesmo tempo os impedindo e protegendo. Apesar de que, no momento que chegaram, entraram em pânico.

Os três surgiram no meio de uma multidão. Von temeu simplesmente explodir, e viu os olhos aterrorizados de Art, mas... Nada aconteceu. Olharam direito para as pessoas, confusos, e não viram pessoas. Viram corpos caminhando devagar, os cérebros só cumprindo as obrigações mais básicas, como deixar o coração batendo e os pulmões funcionando. Eram cascas vazias, sem pensamentos, sem fé para contestar o teleporte de Von.

As pessoas debandaram rápido, quietas e eficientes como robôs. Desligaram as luzes quando saíram, e logo Art, Von e Trevor viram-se sozinhos no supermercado. De certa forma, estavam sozinhos desde que chegaram. Só havia onze pessoas de verdade na cidade inteira.

Aquele truque não era só novo: era completamente impensado. Não havia descrença na cidade. Era como a neblina no lago, quase como nos Picos, mas no mundo real. Assim que ficaram sozinhos, Von deslocou a visão para a caverna abaixo da cidade e deu uma olhada melhor. Esperava ver algo parecido com a mente de Siman, as cores e imagens projetadas nas paredes de rocha, mas as mentes dos moles estavam aprisionadas, seguras dentro de potes mentais como os milhares de enlatados que cercavam os três.

Trevor e Art montaram um acampamento no meio do maior corredor, arrastando sofás e mesas. Acharam prudente não ligar as luzes, para não chamar atenção. Com pouco esforço os três conseguiriam enxergar mesmo no breu completo, mas não fizeram isso. Acender algumas velas era mais discreto.

— Acho melhor você fazer umas barreiras, Von. Você é melhor nessas coisas — dissera Art. — Melhor ficarmos escondidos mais um tempo, até entender o que tá acontecendo. Quem sabe eles não explodam a cidade, afinal.

Von concordou, e logo começou o trabalho. Demorou erguendo suas barreiras, tomando muito cuidado para não ser notado. Seh lhe dissera que a realidade é como um tecido, uma malha de fios ligando tudo... E, quando alguém costura, a vibração se propaga. Para esconder as ondas era só anulá-las, da mesma forma que se faz com ondas sonoras ou eletromagnéticas, como aprendera nas aulas de Física. A teoria era simples, mas exigiu bastante esforço. Fechou as janelas para a luz e as paredes para o som que saía, tornando o supermercado uma espécie de espelho de um lado só. Eles conseguiam observar o exterior, projetando suas visões para longe, mas ninguém iria notá-los ali dentro. E observar era exatamente o que faziam, ignorando o jogo de cartas que Trevor propusera para passar o tempo.

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