Capítulo 7: Art e a Universidade (II)

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Lena demorou para achar um telefone público. A noite soprava fria em seus joelhos nus, ameaçando levantar sua saia preta a cada esquina. Mesmo cercada de gente, não foi atingida pela costumeira vergonha, que a teria feito baixar os olhos enquanto andava. Há alguns anos teria temido aquela caminhada sozinha, mas a única coisa que temia agora era esquecer o número.

Na primeira meia hora a cidade ainda estava cheia de gente, e ela questionou seu plano, a confiança caindo ao chão, até entender que as pessoas estavam vazias. Nem precisava fazê-las a ignorarem, como se tornou seu costume. Lena costumava achar que se sentia sozinha mesmo no meio da multidão, uma angústia boba que sobreviveu à adolescência. Agora era literal.

Sua primeira reação quando percebeu a onda que tirou os moles da cidade foi resistir. Sabia que conseguiria, provavelmente até Alesia conseguiria. Sentiu o frio subindo pelo corpo e entendeu que, por mais que o efeito fosse complexo, conseguiria escapar dele. Preparou-se para agir, mas então fez algo que se tornara seu hábito: parou e pensou.

Parar não era tão simples assim. No começo foi extremamente difícil, mas ultimamente ela parava para tudo, ao mesmo tempo para praticar e para pensar. Quando alguém lhe perguntava algo, ela parava. Andava em círculos na própria cabeça, pensando, e depois voltava ao presente. Conseguia transformar um segundo em trinta, talvez trinta e cinco, e sabia que Art conseguia no mínimo dois minutos. Mas ele não parava o tempo todo, como ela fazia.

A onda aproximou-se forte, complexa, ocupando toda a percepção dela... Então ela parou e pensou. Mesmo tendo passado quase o filme todo parando e pensando no que deveria fazer, horas de reflexão, estava tão acostumada que aquilo nem cansava mais. Analisou um pouco a onda, com as informações limitadas que tinha, e percebeu que era hora de agir. Lena nunca fora chegada em encarar um ataque de frente, mas até agora eles nunca tinham pensado em desviar de algo mental da mesma forma que se desviaria de algo físico: saindo da frente.

Tinha visto o Von fazê-lo algumas vezes, mas ainda assim teleportar do apartamento de Cella foi quase demais para ela. Pensou que vomitaria, mas quando o vento das ruas que cercavam a universidade bateu em seu rosto tudo que sentiu foi orgulho. Errou o ponto de chegada por vários metros, mas para uma primeira tentativa foi até bem impressionante.

Procurou por uma meia hora, discreta, e desistiu. Não acharia o apartamento de memória; só fora ali três vezes, no máximo quatro, e não sabia se tinha muito tempo. Olhava para a universidade, flutuando acima, e apertava o passo.

Quando finalmente achou um orelhão enfiou um par de moedas nele e apertou os botões metálicos, os números frescos na memória que puxara. Não ficou surpresa ao sentir que Alesia resistira à onda, mas se sentiu mal por ver que ela levara as garotas junto. Ter a consciência arrancada do corpo não parecia algo muito agradável, mas tampouco era caminhar por uma cidade dominada por mortos vivos. Lena segurou o telefone grudado no ouvido, aguardando o sinal.

Na cidade um único telefone tocou, e Lena seguiu seu toque.

Logo depois que a onda se foi, um segundo antes de Lena surgir no meio da rua, ela se preparou para resistir a uma sugestão de esquecimento. Se fosse ela tentando afetar toda a cidade com alguma coisa, sua preocupação seria deixar tudo como está. Fazer as pessoas se esquecerem do evento, apagar as memórias enquanto frescas. Mas não houve sugestão. Os milhares de habitantes que sentiram a onda se lembrariam dela assim que voltassem aos corpos. Se voltassem.

— A parada... — começara Seh, muitos e muitos anos atrás, na mesa de pedra que o grupo se reunia no intervalo da escola. — É que eu acho que, se acontecer uma parada muito, mas MUITO estranha... Todo mundo pode simplesmente ignorar.

— Tipo o quê? — dissera Alesia, naquele tom blasé que teve por quase toda a adolescência.

— Tipo sei lá, imagina você andando na rua e tem um palhaço num duelo de sabre contra o presidente. Você...

Nesse ponto todos da mesa riram, enquanto um Seh desesperado tentava defender seu ponto. Mas Lena não riu. O que era mais fácil: explicar que uma onda imaginária, forte e fria, caiu sem molhar, e depois nada aconteceu, ou simplesmente ignorar o ocorrido? Será que as pessoas percebiam que estavam presas? Ainda pensavam?

— Qualquer coisa eu conserto depois — sussurrou Lena, surgindo no meio do apartamento, o telefone ainda tocando. Entrando no quarto, pensou se tinha tempo para descobrir, além do que queria, o que o homem deitado na cama pensava da sensação inexplicável de meia hora antes.

Tom estava deitado imóvel, reto como uma tábua, os olhos semiabertos encarando o teto. Vendo-o assim outra pessoa podia pensar que estava consciente, mas não Lena. Estava relaxado, os olhos vagos e perdidos. Thomas nunca relaxava assim.

A garota caminhou até a cama, primeiro insegura mas então decidida, e envolveu a cabeça dele com as mãos. Não queria nada muito complexo, como aquilo que tirara de Raffes (o que será que aconteceu com ele, falando nisso? Será que sentiu falta do que eu tirei dele?), só uma informação superficial. Seguiu a linha que ligava cabeça de Tom até quilômetros abaixo, finalmente sentindo a mente dele, e cavou um pouco, cuidadosa, entre suas memórias recentes.

— Por favor, Tom... — sussurrou ela, enquanto trabalhava, o ruído do telefone tocando ao fundo. — Onde está o Livro?


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