Alesia se esticou no colchão no meio da sala e suspirou alto. Nunca admitiria, mas ficar sozinha a deixara inquieta. Art e Von estavam ali, sentados imóveis nas poltronas num canto, mas ela já se acostumara a não contar com a presença deles. Não estavam dormindo; era como se estivessem em coma. Se não respirassem ela muito bem podia achar que estavam mortos.
A casa era terrivelmente longe do resto da cidade. Além de ficar na margem mais distante do lago era longe da estrada, de forma que para ir até um ponto de ônibus era necessária uma longa caminhada pela trilha de terra. Esse isolamento que levou os quatro até ali, para praticar, mas mesmo antes a casa fora um ponto de encontro para todo o grupo.
Ela se lembrou de como aprenderam a beber naquela casa, jovens tontos achando que a idade significava alguma coisa, e como todos, ou quase todos, aprenderam também a não beber. Antes de Merriam aparecer o grupo se reunia ali constantemente, e Alie tinha memórias preciosas daquelas noites. Mais de uma vez terminaram todos em cima do telhado, Lena com medo de cair e Trevor achando uma péssima ideia, e passaram a aurora conversando. Naquelas noites eram tão sinceros...
Queria ter Cella ali. Cella saberia como tirá-la de sua insegurança, de seu medo, de seu desconforto. A qualquer momento Lena voltaria, e Alesia não saberia como lidar.
Ficaram um bom tempo se preparando. Art disse que nunca tinha feito o que planejava fazer, então teve que improvisar. Chamou Von para o quarto de cima, pedindo ajuda e isolamento. De novo Alie o odiou por isso. Queria ficar sozinha com Von. Queria aquela conversa. Ao invés disso ficou com Lena na sala, batendo o pé e fingindo ler, tentando ignorar o careca deitado no chão.
Depois que Art terminou ele e Von se sentaram nas poltronas, e ela e Lena levaram o careca para fora. Observaram ele acordar, se levantar e ir embora sem dar a mínima para elas. Depois disso não tinham muito o que fazer; era só esperar. A casa tinha alguns colchões velhos, os mesmos que eles usaram nos tempos de escola, mas as duas não levaram roupas e outros itens básicos, e, depois da primeira hora, perceberam que ficariam ali por um bom tempo. Lena sorriu e se ofereceu para ficar primeiro, e com isso Alesia saiu em busca de suas coisas. Quando voltou, duas horas depois, os desenhos no chão haviam desaparecido. Lena sorrira para ela, como se não fosse nada demais, e partira em busca de suas coisas.
Isso fazia quase duas horas. A qualquer momento ela voltaria.
Alesia colocou os colchões na sala e se certificou que a casa estava devidamente fechada e trancada. Fez uma pequena base de conforto, com cobertores e almofadas, mas percebeu que sozinha o conforto não ajudava. A sala enorme a deixava inquieta, além de todos os cômodos vazios da casa. Era madrugada, mas ela não tinha sono.
No começo leu um pouco de um romance policial, mas, de forma irônica a ponto de fazê-la rir, no livro uma jovem acabava sozinha numa cabana isolada enquanto o assassino se aproximava. Seu lado lógico tentava, sem sucesso, negar aquele medo. Mas o que tinha a temer? Não parou de praticar. Se algum assaltante aparecesse podia fazê-lo dormir num piscar de olhos, e ainda lhe dar algum pesadelo. Se ficasse atenta saberia dizer se alguém estava num raio de trinta metros da casa, e tinha razoável certeza que podia fazer qualquer um ignorá-la.
Sorriu ao pensar nisso, mas logo o medo voltou. Gostava da descoberta, do poder. Mas ainda mantinha a opinião da noite depois da neblina, quando foi embora. Espiando pela janela, podia muito bem estar naquela mesma noite, e logo Von apareceria e não teria muito a dizer. E, como naquela noite, ela sairia furiosa, lembrando-se dos olhares de todos e se sentindo muito mal. Chorara a noite toda, mas soube que estava certa. Depois de ouvir sobre os Picos, sua certeza só aumentou. Era demais para eles.
Olhou para Art e Von, lado a lado em suas poltronas, expressões serenas. Como puderam mudar tanto! E como ela os julgara mal... Quando Von lhe enviou o sonho, foi diferente de ver um filme. Ela não simplesmente sonhou que era Von; ela foi Von. Sentiu o que ele sentiu, seu remorso, sua dor, seus pensamentos... Ela ainda não sabia como se sentia a respeito de tudo que sabia. Precisava conversar com ele...
E Art. Tentava chegar a alguma conclusão sobre o que ele fez, por que fez, mas era impossível. Ele sempre foi mais difícil de ler. Von tentava engolir tudo, mas nunca tinha sucesso. Art, por outro lado, chegava a ser tão fechado quanto Tom. Ninguém notava porque ele fingia bem: só era tão introspectivo no difícil de ver, no que tinha mais fundo dentro de si. No que realmente importava.
Alesia ouviu um galho estalar lá fora e quase pulou do colchão. Fechou os olhos por um segundo... Ninguém chegava. Relaxou.
Queria que Cella estivesse ali. Cella resolveria tudo. Queria que Cella estivesse com os quatro quando eles pela primeira vez viram Merriam. Se estivesse eles não teriam brigado, os dois teriam prestado mais atenção em Lena, e tudo teria...
Alesia fez uma careta de dor. Como era egoísta. O que teria sido de Cella se soubesse? Se visse? Não era para qualquer um. Cella não seria a mesma depois de... Ela nem sabia como chamar aquilo. Depois que o mundo deixasse de fazer sentido.
As batidas na porta fizeram Alesia pular no lugar. Lena entrou, cheia de sacolas e com seu pequeno sorriso.
— Oi Alie. Eu trouxe uns jogos.
— Entra, eu tava olhando a coleção de filmes antigos que os pais do Von deixaram aqui. Tem bastante coisa boa...
Lena entrou, e logo elas começaram a procurar na cozinha por algo para incrementar o jantar que as duas tinham trazido (macarrão instantâneo e salsichas; de novo, Alesia desejou que Cella estivesse lá). Era tarde para comer, mas nenhuma das duas tinha jantado. Logo estavam numa pequena festa do pijama, livros espalhados pelo chão, cadernos, cartas e tudo mais. Um filme de ficção científica genérico passava na televisão, mas as duas concordaram que era melhor que o silêncio do lago.
Alesia não se sentia tão desconfortável perto de alguém desde que era mais nova e ainda não sabia lidar com garotos que gostava, ou com Seh depois de ele mudar... Nãopensanisso. Von estava assustado com o que podia ter mudado em Lena, mas ela estava assustada de uma forma mais pessoal... A garota à sua frente podia muito bem ter sei lá, perdido toda a empatia com humanos, e podia matá-la por capricho. Alie se sentiu mal em pensar nisso, mas a possibilidade correu por sua cabeça.
Já eram quase quatro horas, mas Alesia estava nervosa demais para dormir, e Lena não parecia ter sono. Seria uma longa madrugada.
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Princípios do Nada
Mystery / ThrillerE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...