Consequência (I)

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Nenhum dos quatro acreditava na Consequência. Tinham produzido efeitos cada vez mais impossíveis, e nem sinal dela. Talvez alguma pressão, um incômodo passageiro, mas nenhuma dor, contração involuntária, ou qualquer outro dos sinais que Merriam usara para aterrorizá-los. Achavam que era só historinha, um jeito de controlá-los, como as mentiras que os pais contam. Mas o que aconteceu com Von quando retornaram dos Picos era prova irrefutável que a Consequência existia.

O vento de Von cessou, e Art caiu no chão. Ele tossiu, limpando o sangue no rosto, sentindo a pele quente por causa do soco que levara. A visão escurecera com a falta de ar, e foi voltando aos poucos, como se o universo abrisse as cortinas para ele assistir, de camarote, o que acontecia com quem exagerava.

Viu o corpo de Von sendo torcido por braços invisíveis, rompido como um trapo sujo, estilhaçado como vidro. Ele subiu no ar, cinco, seis metros, tentando gritar mas sem cordas vocais. Segundo Merriam, a Consequência agia de forma sutil: um ataque cardíaco ali, um aneurisma lá. Coisa que qualquer mole pode ver e aceitar. Mas aquilo que Art presenciava entre as árvores do lago era incompreensível, inaceitável, uma pintura surrealista grotesca secando à sua frente, cada segundo diferente, cada vez mais sinistra. As imagens piscavam, como quadros de um filme fora de ordem. Talvez a fé dos moles limitasse o poder da Consequência, e, sem nenhum por perto, o efeito pôde adquirir sua verdadeira forma.

Viu Von estalar como madeira podre, encolhendo-se, tentando parar aquilo mas perdidamente incapaz. "Quando o universo quer seu fim, não tem jeito", dissera Merriam. "Somos insignificantes perto da vastidão. Quando um de nós força a barra, a punição é absoluta."

Os olhos arregalados de Von corriam pela cena, cheios de sangue e desespero, lágrimas viscosas escorrendo pelas trincas no branco. A boca tremia, rachando. Os dentes derretiam.

Art só conseguiu assistir. Sentiu a garganta quente, e expulsou todo o café da manhã. Quando abriu os olhos, não havia mais Von. Havia uma poça de sangue imensa, lisa, ondulando com o vento. E, em seu centro, uma bola de carne.

Nada disso importa, disse uma voz dentro dele. A parte que se lembrava do vermelho e negro. Que se lembrava do seu plano.

Mas essa parte era agora esmagada pelo garoto que via o amigo morrer.

— Ah não não merda merda merda — disse Art, limpando o vômito do entorno da boca e correndo. Tropeçou e caiu no sangue. — Von não caralho isso é culpa minha não...

Sentia Von ainda lá, lutando, longe de onde se conseguia ver. Art tentou manipular a carne, virá-la ao avesso, reestruturá-la, fazer o sangue voltar, mas não conseguia. "A Consequência anula tudo que você tentar. Caso você veja, ou sofra..." Merriam parara por um instante, os quatro ouvindo sem piscar. "A melhor coisa a fazer é se conformar."

— Não não não caralho não...

As lágrimas de Art boiavam no sangue, formando pequenas poças translúcidas, refletindo sua face desesperada. Tentou e tentou, mas a carne não obedecia a nada; ele muito bem podia ser um mole. Pensou em fazer outro corpo, mas quando começou a criar algumas proteínas sentiu, pela primeira vez, a Consequência.

Interpretou o efeito como uma presença, uma sombra, um animal. Uma força da natureza, tirando os olhos de Von e mirando-o fundo na alma. Parou imediatamente o que estava fazendo.

A única coisa boa na situação era que Lena estava inconsciente. Sabia que aquela visão, aquela situação, quebraria ela. Alguma parte de Art sussurrava que ele próprio estava quebrando. Seu melhor amigo morria na sua frente, depois de uma disputa imbecil, e ele não podia fazer nada. Sentia Von deixando a existência, deixando tudo que ele conhecia, e indo além, para o inalcançável e incompreensível.

A esse ponto você deve achar que nada é impossível. Você fez o que quis, torceu e revirou a realidade ao seu bel prazer. Viu o que antes era impossível e riu dele. Mas agora não há solução. Saiba: parar a Consequência é impossível.

Art não conseguia se lembrar onde ouvira aquela voz suave. Era Merriam? Não, Merriam não fora tão direto. Mas era uma voz conhecida. Tinha um nome na ponta da língua, que fugia a cada nova sílaba.

Mas pensa bem. O que é "impossível"?

Art tentava não chorar, concentrando-se, lembrando o que vinha depois, mas seus soluços quase tapavam as palavras. Passou as mãos no rosto, todo ensanguentado, tentando se acalmar.

"Impossível" significa algo para você?

As horas seguintes foram confusas. Quando Art conseguiu organizar os pensamentos já estava de volta na casa do lago, no sofá, Von e Lena dormindo no andar de cima. Lena despertara brevemente, e eles conversaram um pouco, mas ela estava exausta. De alguma forma Art desfez tudo; tudo menos a poça de sangue, que ele só deu um jeito de esconder. Um monumento ao que aconteceu. Sua cabeça doía.

Só conseguia pensar em consequência. Na Consequência, e se algum dia as imagens sairiam de sua cabeça; nas consequências daquele evento nele próprio, no que pensava e sentia; na consequência do que fizeram com Lena, o que quer que tenha sido; na consequência do poder que tinha agora. Sentado assim, de volta à realidade, quase conseguia acreditar que tudo voltaria ao normal. Lena estava bem. Ele esqueceria seus planos. Mas então viu-se pensando no que seria capaz se realmente conseguisse peitar a Consequência...

Art temeu dormir, imaginando os pesadelos horríveis que teria. Uma parte dele esforçava-se muito para lembrar, compreender como salvara Von, mas não teve forças para resistir ao sono. Os sonhos, entretanto, foram agradáveis até demais.


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