Von abriu os braços para a imensidão azul do lago e riu.
— Olhem só que beleza! — ele disse, e gritou alto para as montanhas. Sua voz voltou depois, alta, etérea. Os outros atrás dele riram.
— E agora, Von? — disse Lena.
— Agora a gente faz o que a gente quiser! — Von sorria como uma criança no natal. Não, mais: como uma criança vivendo num natal eterno.
Art lembrava-se muito bem daquele início, a imagem dos três à sua frente, o formigamento na barriga. Uma pitada de medo, excitação, e um temor irracional de que aquilo era um sonho. Tinha que ser, não? Todas as possibilidades negadas pelo amadurecimento, de novo disponíveis... A vida interessante que tinha sonhado para si, discutido com Von entre momentos sérios da infância, os planos, a grandeza... tudo factível de novo, tão verdadeiro quanto ele sempre quis. Sorria com felicidade, sim, mas não só. Se algum dos três olhasse para trás, veria um tom de ganância.
— Olhem bem: onde a gente tá? — continuou Von, voltando-se aos três, fazendo Art esconder o sorriso.
— ...No lago? — eles murmuraram.
— O lago no inverno — disse Von. — Ninguém vem aqui fora poetas dramáticos e malucos da natureza. — Fechou os olhos, e sua face tornou-se tensa. — Não tem ninguém num raio de quilômetros. Só nós quatro.
Ele abriu os olhos, sorrindo novamente.
— A única limitação que temos somos nós mesmos.
A casa de veraneio dos pais de Von, a casa do lago, ficou quase desocupada naquele primeiro final de semana. Os quatro dormiram à beira da água, e experimentavam logo que o sol nascia. Lembrando-se daqueles dias, Art sentiu-se bem. Eram muito inexperientes, inocentes... Mas como era bom sê-lo. Não havia responsabilidade, e nem algo tão pesado quanto o Livro, ou os incidentes no lago. Era só aquela nova paixão que os quatro tinham encontrado.
— Só seria melhor se tivesse neblina — repetia Von naqueles finais de semana, no final do dia. — Se tivesse neblina ninguém conseguiria nem imaginar que a gente tá aqui. "Mesmo distantes da sociedade, a fé das pessoas nos atrapalha" — Ele imitava Merriam, tão bem que os outros sempre riam —, mas tenho certeza que com neblina nem isso vai nos atrapalhar.
— Isso não é perigoso, Von? — Alesia sempre perguntava.
— Perigoso? Qual é, a gente ainda tá começando! O que pode dar errado?
O que aconteceu desde então? O que fez Von mudar tanto de opinião a respeito da neblina? Bom, foi ele descobrir exatamente o que podia dar errado. Art nunca descobriu o que ele fez, como ele quase machucou Alesia, mas sabia que tinha sido uma besteira bem grande.
Alguém próximo limpou a garganta. Art percebeu instintivamente que aquilo era direcionado a ele.
— Creio que você saberá responder por que a velocidade é nula neste ponto?
Art abriu os olhos devagar. Não estivera dormindo, mas, vivenciando de novo as memórias como estivera fazendo, o professor não tinha como saber. Encarou o careca muito profundamente, ignorando o quadro.
— Por causa da viscosidade.
Um mundo de possibilidades correu pela mente de Art, mas ele deixou passar. O professor deu de ombros, derrotado, e voltou ao quadro. Era a primeira aula do semestre, e a primeira aula onde, em um longo tempo, nada de inesperado acontecia.
No semestre passado, a coisa tinha sido diferente. Depois das reuniões na casa do lago, eles ficaram ousados. Art lembrava-se do dia, uma aula chata qualquer que ele decidira não ser tão útil quanto uma soneca. Tão logo começou a dormir, sentiu um cutucão. Von, ao seu lado, sorrira seu sorriso convencido.
— Olha isso aqui.
O professor andava de um lado para o outro, com calças cáqui sem graça que provavelmente serviram muito bem nele uns trinta anos e quilos atrás. Art seguiu os olhos de Von, direto nas calças. Franziu o cenho, sem entender. Von fitava o professor com uma intensidade que só podia significar que estava prestes a fazer alguma idiotice.
O rasgar despertou metade da turma. O cinto segurou, mas não por muito: parecia que as calças iriam ao chão a qualquer instante. O professor fingiu ignorar, uma mão no bolso outra no giz, mas a cada passo havia um pequeno sussurro das fibras se partindo. Art e Von ficaram vermelhos de tanto segurar o riso. Olhando para o lado viram que até Alesia com a cabeça baixa, escondendo a cara. Ao final, o professor sentou atrás da mesa no canto, e continuou a aula dali.
Foi o começo. Criou-se uma competição não dita entre Art e Von, quem fazia a coisa mais absurda para deixar a aula divertida. Num dos dias Art fez o professor repetir inconscientemente a palavra "batata" a cada três frases, completamente fora de contexto, mas depois Alesia brigou feio com ele porque um dos alunos foi ao departamento perguntar se aquele professor estava com demência. Em outra ocasião, Von fez todos os gizes que o professor pegava explodirem em sua mão. Alesia também brigou com ele, argumentando que o cara quase teve um ataque cardíaco.
Isso seguiu por um semestre inteiro. Às vezes os outros comentavam, principalmente Trevor (que notava tudo, sempre), e Art e Von davam de ombros, rindo. Alesia publicamente discordava daquilo tudo, chamava os dois de imbecis, ao que eles riam e abaixavam o rosto, num misto de orgulho e vergonha.
Agora, entretanto, Art não tinha vontade de nada. Até cogitou algumas coisas, fazer o professor voltar ao quadro e dar uma aula de Biologia ou Geopolítica ao invés da Física que estava metido, mas... não era mais tempo de brincadeiras. Von ter ficado na dele era um atestado de que o colega concordava.
Teria Von prestado atenção naquele momento? Estava atrás dele, no fundo da sala... não via seus olhos. O professor escrevia entusiasmado no quadro, então Art fechou os olhos mais uma vez, cruzando os braços e apoiando-se na parede.
Lena fizera um trabalho especialmente bom, ele tinha que admitir. Se não conhecesse tão bem a garota não teria nem ideia de onde o Livro estava. Ela não havia lhe dito, mas não foi necessário. Uma rápida visita ao Bosque e teve certeza que o encontraria. Preocupava-se um pouco com os outros tentando lê-lo, mas sabia que a primeira impressão marcara todos. Ninguém tentaria nada. Alesia não tinha mais interesse, como ela afirmara no centro; Lena nunca fazia nada; e Von... Von não tinha mais aquela sede. Art demorou a entender o quanto, mas era muito claro. Depois que fez Alesia ir embora, ele não foi mais o mesmo.
A aula acabou mais cedo: era a primeira do semestre, e, como dissera Von duas horas atrás, a primeira aula é sempre inútil. Art procurou Lena com os olhos enquanto levantava-se, mas não a encontrou. Viu Clara, que parecia levemente perturbada, e Alesia, que não lhe deu muita atenção. Ainda precisava convencê-la a conversar com ele... Era para o bem dela. Alie esteve estranhamente quieta naquela manhã, o que usualmente significava que estava planejando alguma coisa.
— Eu tô indo. Você vem mesmo? — disse Von, as olheiras mais acentuadas do que nunca.
— Sim. Vamos.
Nuvens escuras alastravam-se sobre a cidade, cobrindo o céu azul da véspera com um cinza-negro, temeroso. Os outros do grupo despediram-se deles rapidamente, e cada um seguiu seu caminho. Art guiou Von até o ponto de ônibus perto da biblioteca, e quando parou o jovem fez uma expressão confusa.
— Você não tá de carro, Art?
— Não.
Von esperou mais alguns minutos para falar. Art achou que ele media cada palavra.
— Aconteceu alguma coisa com o seu carro?
— Explodiu.
Von fez uma excelente imitação de Tom e sua seriedade mortal. O ônibus branco cruzou a avenida, e os dois entraram. Sabiam o caminho até o prédio de Seh, e nenhum falou enquanto o ônibus corria em direção ao centro.
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Obrigado pela leitura! Fique ligado, novas cenas serão publicadas todas as segundas, quartas e sextas-feiras. E se vocêficou impaciente e quer ler mais, dá uma olhada aqui: http://bit.ly/principiosdonada
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Princípios do Nada
Gizem / GerilimE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...