Capítulo 11: Lena e o Livro (III)

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Lena caiu no chão devagar, como se simplesmente tivesse perdido o equilíbrio. Não sentia dor, mas também não sentia as pernas. Não sentia boa parte do corpo.

Apoiou-se no que restava do pedestal de pedra onde deixara o Livro, usando o braço que funcionava. A pedra que atravessara sua barriga acertara o pedestal em cheio, lançando o Livro em algum ponto do escuro. A luz roxa de suas armadilhas se atenuara, e ela agradeceu por isso: se pudesse ver com detalhes a situação em sua barriga, provavelmente desmaiaria.

Rocan se levantou de uma vez só, apoiando os braços nos joelhos. Os dois braços. Tinha recriado um membro tão rápido? Não... Era o mesmo de antes: nunca tinha explodido. Foi só uma ilusão.

Lena trincou os dentes, afiando os olhos. Ela havia previsto um ataque mental de Rocan, e para isso preparara a armadilha adequada, o que provavelmente a salvara de morte instantânea segundos antes... Mas não achara que Rocan tentaria atacar seu corpo.

Isso não significava, entretanto, que ela não tinha se preparado.

As escritas roxas brilharam mais uma vez, e Rocan travou no lugar, preso não por alguma força externa, mas pelos próprios músculos, tensionados além do seu controle. Das fendas entre os seixos que formavam as paredes à volta deles brotaram facas, centenas de facas, disparando tão rápido que pareceram feixes de luz roxa. Atingiram Rocan em cheio, tão numerosas que cobriram seu corpo todo, tornando-o uma estátua vagamente humana, cheia de espinhos, prateada e roxa.

Um segundo depois as facas caíram. Abaixo dos furos em suas roupas, Lena viu a pele de Rocan. Sem um arranhão.

"De mim você perderá a sua humanidade" — Rocan falou, citando algo que ela reconheceu. — Ah Hol, como você foi tolo. Sua punição poética é uma bênção.

Lena correu pelos conhecimentos roubados, fazendo daquele segundo um minuto inteiro, revendo tudo que tirara de Rocan. Quando voltou, sabia como se curar. E sabia, também, que uma das punições que ele sofrera foi ser tornado imortal. Só então entendeu quão imortal ele era.

Eu tenho que admitir que te subestimei — disse Rocan, ainda paralisado. — Mas, comparado ao que você pensou de mim, eu até te respeitei.

Rocan deu um passo à frente, saindo do monte de facas que se amontoaram em seus pés. O corpo todo tremia com a armadilha de paralisia de Lena, e ele precisou de um momento para retomar a fala.

Mas ainda assim foi impressionante. Eu nunca tinha visto nada como esse seu truque. Se você fosse mais experiente, quem sabe teria conseguido tirar minha fé tão rápido quanto eu a recuperava.

Lena refazia o corpo, mas era lenta: o processo exigia demais dela. Redirecionou os esforços, mantendo o mínimo necessário para se manter viva, e reforçou sua armadilha. Rocan parou de caminhar.

— Mas este não foi seu único erro. — Ele usava a própria boca para falar agora, sobrepondo todos os esforços de Lena para paralisá-lo. — Primeiro, você procurou em mim algo que não está lá. Eu não sei de onde você tirou a ideia que isso é possível... E depois, você achou que, por ser o Mestre da Mente, eu não teria poder sobre outros campos. Inocente. — Ele sorria agora, dando um passo assustadoramente confiante. — Mas admito que subestimei sua inocência. Achei que ver seu amigo Von sofrendo já teria sido suficiente, mas tive que me esforçar mais do que isso. E esse foi o seu segundo erro. Se você sabia sobre meu exílio, por que tentar? — Ele penteou o cabelo com as mãos, de uma maneira tão particular que ela derramou uma lágrima. — Você sabe que não será você a me matar. Será seu amigo Von. Está na minha cara.

Rocan agora estava a menos de três passos dela, iluminado de baixo para cima, as sombras da face fazendo-a se lembrar de Von tentando contar histórias de terror na fogueira, fazendo-a se lembrar de que a última vez que conversara com ele foi na casa do lago, e ela sabia de Siman então, sabia do medo paralisante que se apossara dele, e, mesmo lá, não fez nada. E, se continuasse assim, nunca faria. Nunca mais falaria com ele. Morreria com a imagem de Rocan na retina, uma versão deturpada do rosto que amava.

Ela não conseguia sobreviver e impedi-lo de caminhar ao mesmo tempo. Não conseguiria destruir o corpo dele, já que mal compreendia do que era feito. Suas armadilhas não foram poderosas o suficiente, e seus planos agora pareciam ridículos. Só sobrava uma opção, tão ousada que só de pensar nisso ela desistiu.

Que impulsivo. Que idiota. Isso não é você, Lena.

Mais dois passos e Rocan estaria lá.

Você não teria feito nada disso. Você teria continuado passiva, e se arrependeria como fez todas as vezes antes. Mas você teve um papel aqui, no final de tudo. Enganou Rocan, pelo menos por um tempo. Talvez... Talvez deixe a Alesia orgulhosa.

Mais um passo.

Não. Alesia não ficaria orgulhosa de mim se soubesse que eu desisti.

A luz roxa cessou. Rocan perdeu o equilíbrio, subitamente livre da paralisia, e caiu em cima de Lena. A tontura veio imediatamente. Perdeu muito sangue, e não se esforçava mais para sobreviver.

Von estava caído em cima dela, as mãos roçando em suas orelhas. Os rostos a centímetros um do outro. Toda a vez que imaginava aquela situação ela se via perdendo a respiração. Via-se hesitando. Von nunca estivera tão próximo dela, nunca nunca. Ela colocou a mão naquele rosto, como nunca fez e sempre se imaginou fazendo, alisando a pele, o contorno do queixo. Um momento agridoce, uma mínima hesitação.

Mas aquele não era Von.

Os dedos de Lena enrijeceram enquanto ela apertava a face de Rocan, paralisando-o. Do outro braço emergiu uma imagem, descolando-se da pele como se fosse um membro de fumaça branca, antes contido por pele. O braço fantasma penetrou a testa dele como uma lança, estilhaçando as defesas passivas que ele mantinha e chegando até seu cerne de uma vez só. Ela sentiu aquilo que vira antes: o mosaico de cores, a presença colorida e amorfa. Rocan tentou resistir, mas ainda parecia confuso com o que ela fazia.

Lena agarrou o que ele tinha de mais profundo e puxou. Puxou com toda a sua fé roubada, toda a sua força de vontade recém-descoberta. Puxou com tudo o que ela era.

Rocan urrou, e dessa vez ela gostou daquilo. O espírito, essência, alma, fé... O que fazia de Rocan Rocan saía pela testa, como um chifre de cristal salpicado por luzes profanas de natal, iluminando as paredes mais uma vez. Lena puxou tudo para fora num estalo. Segurava o que se parecia uma lesma, contorcendo-se em sua mão incorpórea. Rocan ainda estava em cima dela, mas os olhos estavam frios, sem consciência. Ele não respirava.

Ela sabia que aquilo não era físico, mas olhando para o corpo amorfo em seus dedos era difícil acreditar nisso. Tão pequeno, tão frágil... E ela iria destruí-lo.

Mas como?

O corpo de Rocan ergueu-a do chão e lançou-a para o lado. Quem sabe só metade do seu corpo tenha ido; ela não sentia a outra metade mesmo. A forma em sua mão saltou de volta para testa de Rocan, entrando nela ao mesmo tempo que Lena caía no chão. A garota apoiou o braço que funcionava no chão, retomando os esforços para continuar viva, já pensando em como tentaria fazer aquilo de novo... Mas ela não sabia como destruir aquela essência. Mesmo se conseguisse tirá-la mais uma vez, não tinha ideia do que fazer depois. E não tinha, também, tempo para descobrir.

Lena perdeu o equilíbrio, mudando a mão de lugar, e seus dedos escorregaram por uma superfície que não era o chão. Deslizou acima do chão, como se houvesse uma película, ou... Uma página.

O Livro.

— Você é... — disse Rocan, se levantando. — Cheia de surpresas! Eu não esperava isso de você.

Nem eu.

Lena enfiou a mão na barriga, enchendo-a de sangue, e esfregou no Livro. Seu efeito foi imediato: o líquido perfurou o papel como ácido, provocando um chiado agudo enquanto o destruía.

— NÃO! — berrou Rocan, deslizando de joelhos no chão até o lado do Livro, lançando a garota para o outro lado.

Agora sim Alesia ficaria orgulhosa. Quem sabe até o Von ficaria...

Helena se chocou contra a muralha de pedra com tanta força que deve ter cuspido um dente. Esperou que fosse um dos dentes de trás; queria estar bonita em seu último sorriso.


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