Com o passar dos anos Von percebeu que preferia andar a pé. Antes aprendera a saltar vinte metros; agora saltava trinta, cinquenta, cem, duzentos. Mas isso perdeu a graça. Aprendeu a atravessar os picos como se fossem ilusões na névoa, mas isso também não era mais atraente. Aprendeu a sumir e reaparecer, primeiro alguns centímetros, como no passado distante, depois metros, depois quilômetros. Ficara dias meditando para, em segundos, fazer a caminhada de semanas. Aprendeu a voar pelos céus, mais rápido que qualquer pássaro, mas depois de dois anos inteiros sem tocar no chão foi um alívio e um prazer em sentir a grama nos pés.
Subia os picos usando as próprias mãos, afundando-as firme na rocha, e pensando em nada mais do que como sobreviver. Caiu algumas vezes. Nas primeiras parou no ar, tornou a grama água, fez do corpo pedra... Mas nas outras deixou-se sentir a dor e partir os ossos, para levar a escalada mais a sério. Consertar pedaços do corpo era banal.
Acima, o enorme zepelim o seguia, maior que qualquer nuvem. Criou-o todo, átomo por átomo, fibra por fibra. No começo aquilo o distraiu, sua criação mais complexa, mas depois que terminou desenvolveu certo desgosto pela arte. Lembrava-o demais dos paraquedas. Fizera o zepelim ter uma casa, além de nutrir a vã esperança de que alguém veria. Não entrava nele há meses. Naqueles dias finos o veículo servia só para carregar o túmulo.
Mesmo sem querer, Von aprendia. Moldar o ambiente tornou-se tarefa tão fácil, tão trivial, que ele mal notava. Adquirira um tipo sublime de compreensão das coisas, uma fé inabalável, um foco preciso. Antigamente testava seus limites o tempo todo, mas isso foi antes do primeiro incidente no lago, da neblina, quando quase matou... Alesia, quanto tempo. Pensava pouco nela, mas, de todos, era a que mais surgia em seus pensamentos.
Mesmo depois do incidente, Von ainda experimentava com frequência. Uma parte dele sonhara em fazer um sol com as mãos. Agora sabia que conseguiria. Mas pra que tentar?
A parte boba dele, a parte curiosa, entusiasmada... Tornou-se carne dura e fria junto com Art. Era cruel, mas era a forma que ele pensava no assunto.
Chegou ao topo de mais um pico e sentiu algo estranho. Não usava mais roupas (qual o ponto?), e tinha uma barba que nunca achou que conseguiria ter, passando da cintura. Alisou o cabelo longo e olhou à sua volta.
Havia uma árvore naquele pico. À frente viu um espaço estranhamente vazio, um buraco na paisagem. Faltava algo ali. Sentou-se no chão, e meditou. A noite veio, foi, e veio novamente, e ele não se moveu.
Von se sentia apático naqueles dias. Mesmo retornando ao primeiro pico, depois de anos procurando, ele não sentiu muita coisa. Não era só a apatia que veio com o luto, não, era algo mais profundo. Não se importava com nada, e isso trouxe liberdade. Liberdade para não temer falhar, não temer a própria morte, liberdade esta que tornou sua fé algo que o Von de antes nunca conseguiria conceber. Ele não tinha nada a perder, mas também nada a ganhar. Era um com os Picos. O universo se curvava aos seus pés.
Só havia uma coisa que separava Von de experimentar esse estado contemplativo em sua plenitude. Uma última tarefa, um ponto de curiosidade. Quando finalmente abriu os olhos, terminando provavelmente seu maior feito, havia mais um pico no horizonte. Maior que os outros ao redor, grande na base...
Von encarou-o e a terra escorreu pela parede. Grandes blocos caíram da encosta, mais trincas surgindo... Até que só restou o que havia abaixo. As paredes de aço reforçado que ele fizera, num arranjo complexo e horrível de se olhar.
A fortaleza. Finalmente. O jovem sorriu como não sorria há anos.
Na hora sentiu-se mal pelo que fez, mas agora estava feliz por sua fraqueza. Não teria conseguido destruir a fortaleza nem se alguém tivesse colocado uma arma em sua cabeça. Na última noite de insônia, antes de partirem com o avião, ele caminhou por aqueles corredores, não só observando, mas compreendendo. Misturou a técnica das memórias de Art com algumas coisas que aprendera com Lena (não pensava nela há tanto tempo... Será que teria chorado achando que eles morreram?), e fez algo novo. Aquele pico fora destruído, sim, mas uma parte dele, a parte que importava, continuou lá todos esses anos, esperando uma contraparte material para existir.
Von demorou um dia inteiro para chegar onde realmente queria. Passou horas redescobrindo as antigas salas, os quartos, os lugares esquisitos que eles criaram... Antes aquele lugar era tão cheio de energia, conversa, vida. Os dois, ele e Art, confiantes em seu poder.
Quando finalmente subiu à biblioteca de Art, viu que era maior do que ele se lembrava. As prateleiras de madeira escura subiam até sete metros de altura, tudo cuidadosamente organizado, escadas bem-dispostas e uma mesa ao centro, onde havia vários volumes abertos com imagens de aviões e alguns textos... Toda a experiência que Art tivera no assunto na vida.
O salão era tão grande que era difícil ter uma ideia de seu tamanho. Os corredores finos entre as estantes seguiam até tão longe que a luz não alcançava.
Von sorriu um sorriso cansado. Era uma boa chance de testar uma de suas ideias recentes. Encostou os pés nus no carpete e se concentrou. Acreditou.
Sentiu todas as prateleiras, foi até capaz de contá-las. Contar cada volume contido nelas, todas as páginas, as grossas, as com figuras. Sentiu todas as escadas e todas as lâmpadas, todas as paredes... e um pequeno cômodo, escondido entre um corredor especialmente longo. Abriu os olhos.
Claro que existiria uma sala secreta. Art tinha seus segredos; todos têm. Não era algo a se repreender. Em circunstâncias normais Von teria respeitado aquela intimidade, mas... Art estava morto. Quem sabe alguma ideia dele o ajudaria a sair dali. Era sua última tentativa de voltar ao mundo, sua última vã esperança.
Mas esse era só um dos motivos. Uma parte de Von, a pequena parte que ainda era um Von reconhecível, queria ler os pensamentos de Art. Ouvir os segredos, saciar as dúvidas, entender o que o amigo pensava enquanto ninguém estava olhando. O Von que rumava os Picos não tinha nenhum interesse nesse tipo de coisa, mas ele ainda não era pleno. Se aquela necessidade fosse satisfeita, quem sabe ele poderia esquecer Art para sempre. Engolir a última gota de remorso e viver em plenitude.
Von caminhou entre o corredor fino, os pés ainda descalços, sentindo o cheiro quase esquecido de papel inundando o ar. Ao fim havia uma parede lisa como todas as outras. Von tateou-a com uma mão, alisando o concreto azulado, e não achou nada de estranho. Era uma parede maciça.
Com um pequeno sorriso, lembrou-se do truque que Art usara no lago, uma vida atrás, e atravessou a parede.
Art fizera sua cota de prevenções ali. Havia um véu envolvendo o cômodo, que, quando violado por Von, ativou uma série de armadilhas mentais. Ele desfez tudo com facilidade. Fez luz brotar da pele, e avaliou o quarto.
Era tão pequeno que chegava a ser claustrofóbico. Havia algumas dúzias de livros empilhados em um canto, e uma mesa com uma televisão antiga. Von também viu um objeto que não reconheceu de imediato, até segurá-lo. Uma fita cassete. Na televisão havia um espaço para ela.
— Olha só, Art, seu maldito... — Von tossiu ao falar. Não falava há meses. — Conseguiu tirar a imagem tão bem a ponto de fazer uma fita...
Von inseriu a fita na televisão e ligou o aparelho. A imagem ficou turva nos primeiros momentos, mas depois focou-se em... Outra televisão. Pelo ponto de vista era claro que se tratava da visão de Art.
— Mas como eles fazem? — perguntou a menininha dentro da televisão dentro da televisão.
— É simples — respondeu o homem ao lado dela. — Vamos ver, agora, como eles fazem para tirar fotos!
Von franziu o cenho.
E, enquanto entendia o que assistia, assumiu uma expressão horrorizada.
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Obrigado pela leitura! Fique ligado, novas cenas serão publicadas todas as segundas, quartas e sextas-feiras. E se você ficou impaciente e quer ler mais, dá uma olhada aqui: http://bit.ly/principiosdonada
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Princípios do Nada
Bí ẩn / Giật gânE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...