Capítulo 5: Os Mantos da Capital (VIII)

6 0 0
                                        

Por mais lotada que estivesse a praça de alimentação, ainda era um shopping pequeno de uma cidade pequena. Em quinze segundos dava pra ver todos que estavam no saguão. O lugar fecharia em meia hora, mas era sábado, e a maioria daquelas pessoas não tinha planos muito melhores para a noite. Estava barulhento, mas não o suficiente para abafar o som do bater de pés.

— Podia parar com isso? — disse Art, olhando à sua volta.

— O quê? — disse Von, também olhando. Esperavam já há algum tempo, sentados os dois no mesmo lado de uma mesa com quatro cadeiras, numa das extremidades do saguão. A lanchonete mais próxima estava em reforma, então, apesar da proximidade com um dos banheiros, aquele era o ponto menos movimentado da praça.

— Isso que você tá fazendo com o pé.

— Ah. — Ele parou. — Já viu alguma coisa? Algum sinal?

— Nada.

— Que merda. — Von desistiu de olhar, espreguiçando-se e fazendo o corpo vibrar. — Será que eles fizeram algo pra não serem vistos?

— Duvido. Os caras provavelmente vieram de ônibus. — Art também pareceu desistir da observação, e deixou o olhar cair na mesa.

— Isso me perturbou um pouco — disse Von. — A viagem de ônibus e tal. Será que o teleporte é tão extraordinário assim?

— Acho que não é bem isso, eles só são precavidos. Consequência e tal. É um risco desnecessário. Mas aposto que vão fazer alguma coisa pras pessoas nos ignorarem, ou pelo menos abafar as nossas vozes.

— É, faz sentido.

Um homem gordo se aproximou da mesa. Os dois sentiram a espinha esfriar, mas o gordo aproximou os óculos com a mão e fez uma inconfundível expressão de engano. Caminhou na outra direção, e os dois suspiraram.

— Escuta, já que temos algum tempo... — começou Von — Me diz, o que tinha dentro da minha cabeça?

— Coisa complicada. Você conseguiu escapar? A Lena te falou? — Art fingia desinteresse. Nunca foi bom nisso; Von o conhecia bem.

— Consegui.

— E aí?

— Ah, nada demais. — Von soltou um sorriso convencido. — Umas coisas sobre ter visto o Seh, umas conversas sem sentido...

— E isso, de alguma forma, explica como você sabe ler? — Art não pareceu impressionado.

O riso de Von morreu.

— Não. Não explica. — Ainda eram memórias frescas, numerosas e complexas demais para que tivesse os detalhes à mão, mas... Não havia nada sobre escrita. Havia coisas sobre respiração, meditação, sobre observar a natureza e sentir o universo, sobre...

Antes de passar por aquilo Von imaginaria que as memórias viriam lentamente, um dia de cada vez, e só tempos depois todos aqueles meses seriam restituídos de forma plena. Se explicasse isso a Art, em uma conversa amigável como as que eles tinham antes dos Picos, este retrucaria com um merecido "baseado em porra nenhuma, né?". Von ficaria irritado, mas compreenderia o argumento do amigo. Apesar disso, achava a ideia lógica.

Mas era totalmente errada. Depois que recebeu o primeiro baque, ainda na casa do lago, tudo voltou de uma vez. Tinha as lembranças lá, como se apenas estivesse ignorando-as, esquecendo de pensar nelas. Passara as últimas horas revisando os acontecimentos na cabeça. Era uma situação muito estranha, onde, a cada nova lembrança, ele se surpreendia mas já sabia daquilo. Era como ler um livro a primeira e segunda vez ao mesmo tempo.

Princípios do NadaOnde histórias criam vida. Descubra agora