A luz do quarto de Alesia escapava por baixo da porta e pela janela, e, para algum observador distante, seria o único ponto de luz na parede morta do prédio. O centro era puro silêncio, já que era tarde — mais tarde do que era sensato, considerando que estavam no semestre letivo, e ela teria que estar de pé em menos de cinco horas.
Tinha sono, mas não queria dormir; na véspera cometeu esse erro, que se esforçava para não repetir. Sabia que Clara fora dormir na casa de Cella, mas ela não quis. Era orgulhosa demais para admitir que estava perturbada por causa do Livro.
Não pensa nisso.
Passou as primeiras horas da madrugada numa procrastinação útil, arrumando os livros na estante, as folhas na escrivaninha, os pôsteres de banda colados na parede. Pensou em organizar suas roupas também, mas o corpo clamava por descanso. Mesmo querendo fugir disso, deixou-se cair na cama. O abajur do criado-mudo tinha uma luz amarela confortável, relaxante... Tentou ler por alguns minutos, mas os olhos pesaram e ela deixou o romance de lado. Ficou um bom tempo somente deitada, meditativa, esforçando-se para não ceder ao sono. Toda a motivação que precisava aparecia cada vez que fechava os olhos, com os pesadelos da véspera saltando na cara dela.
Suspirou. Foi um dia frustrante, sua investigação sem muito resultado, e sua inquietação sobre o Livro sem dar trégua. Ansiava por descobrir o que aconteceu entre Art e Von, mas sabia que aquilo era uma fuga. Quando pôs os olhos no Livro ela entendeu o que ele era. Olhando para sua capa escura, retorcida, teve por um momento total consciência do que ele significava, e de tudo que poderia — iria — acontecer. Um segundo depois deu conta de si e estava no banheiro, o conteúdo do estômago todo no chão. Quando voltou à mesa viu que todos tinham sido afetados, mas achou que ninguém tinha realmente entendido. Era em parte arrogância, em parte sustentado pelo que sentira.
Muda de assunto.
E o sumiço de Seh, o que significava? Significava alguma coisa? Não dera àquilo devido pensamento. Sua relação com ele... Piscou forte, levando uma mão à cabeça. Era outro pensamento que mantinha distante; era uma vitória não ter pensado naquilo em quase um mês.
Seh surgiu em sua vida uns oito anos atrás, quando ela se mudou para a cidade, no final do ensino fundamental. Era muito fechada naqueles seus anos adolescentes, a mudança e o divórcio dos pais criando ao seu entorno uma parede intransponível. Sorria pouco, e não fazia esforço algum para socializar. Enchia-a de raiva ver os sorrisos falsos que dançavam nas faces das pessoas: seus pais, seus familiares, seus professores, as outras garotas... Riu sozinha na noite, lembrando-se de como, naquela fase revoltada, chegara até a escrever poesia. Poetisa, ela! Que piada. Tirou seus últimos versos da memória:
"Queria eu que os sorrisos fossem pagos
Assim nunca seriam dados de graça."
Patético. Lembrava-se exatamente da cena: sua letra bruta estampada na folha amassada, ela encolhida num canto do pátio, o cenho franzido como permanecera durante boa parte daquele ano. Então um pequeno grupo aproximou-se dela, e os versos morreram.
Art e Von eram muito carismáticos, à maneira deles. Falavam alto e discutiam furiosamente sobre qualquer coisa, mas sempre acabavam entrando em consenso. Tentavam chamar a atenção dela. Trevor era mais quieto, muitas vezes chamado para opinar sobre os temas, suas informações técnicas bastante úteis. Também tentava chamar a atenção dela, à sua própria maneira. Estava sendo muito convencida pensando aquilo dos três? Cella era muitas vezes quase tão quieta quanto Lena, e isso a surpreendeu. Desde o início percebeu como Marcella via. Tinha algum tipo de observação acurada, alguma compreensão... E vê-la usando isso para cuidar dos amigos fez Alie ter vergonha de si mesma, e querer ser uma pessoa melhor. Tornaram-se próximas rápido.
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Princípios do Nada
Misterio / SuspensoE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...