Capítulo 2: Amigos (V)

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Com a chuva o centro morria. Se tivessem chegado ali uma hora antes teriam visto a evasão em massa, o surgimento instantâneo de dezenas de vendedores de guarda-chuva e a incrível perícia dos comerciantes desmontando suas lojas móveis; agora, entretanto, viam somente o pouco que a chuva forte permitia e as ruas desertas.

Von seguia à frente, o capuz cobrindo a cabeça. Não gostava de tê-lo assim, limitava sua visão periférica, mas também não queria ficar molhado e nem usar a outra alternativa. Ouvia os passos rápidos de Art atrás dele, e nas poucas vezes que deixou a curiosidade vencer e olhou para trás parecia que o colega simplesmente ignorava a chuva.

Seh morava num antigo prédio parte residencial parte comercial, com um amplo saguão de entrada cheio de lojas. Pelo horário elas deveriam estar abertas, mas os vendedores, prevendo o movimento nulo que viria com aquela chuva, desistiram e foram para casa cedo. Os passos dos dois ecoaram pela galeria vazia, atravessando o chão de mármore polido e deixando rastros de água atrás deles. Um dos elevadores estava à espera.

O rangido da caixa metálica era a única coisa a quebrar o silêncio. Os dois agiam como profissionais, sérios e casuais, mas a tensão era palpável, um bloco de granito entre eles. Von observava cada movimento de Art atentamente, enquanto Art parecia simplesmente existir. Quando a porta metálica se abriu houve um momento de hesitação, e ambos saíram. Não houve rastro d'água no corredor.

— É esse aqui — disse Art, um segundo antes de Von apertar a campainha com a palma da mão toda.

— Seh? — ele disse, batendo na porta com uma mão enquanto apertava a campainha com a outra.

Era um corredor longo e estreito, uma janela em cada extremidade e várias portas espalhadas de uma forma nada simétrica. Nada se moveu, nada fez som.

— Ele não tá aqui — disse Art, sem emoção na voz.

— Tem... — começou Von, mas não continuou. É claro que você tem certeza.

Os dois ficaram parados por um momento, Art coçando o queixo, Von esfregando as mãos. Art percebeu o gesto tarde demais.

— Von, espera, calma aí...

Von agarrou a maçaneta com força e a fechadura estalou ruidosamente. A porta se abriu lenta, rangendo. Ele entrou no cômodo, e Art seguiu.

Era um típico apartamento barato do centro: dois quartos pequenos, sala-cozinha, um banheiro e uma lavanderia minúscula. Ambos já tinham estado ali, mas só bem no início da graduação. Seh se mudara para lá por ser próximo da universidade, mas na época Von achou que suportaria morar longe para viver em uma casa como a dos pais de Seh. Talvez aquilo fosse mais relacionadoà liberdade do que à proximidade.

Art acendeu as luzes e Von fechou a porta atrás deles. Ambos esperavam algo surpreendente; a surpresa, entretanto, foi o quanto a cena era comum. A parte de Von que assistiu a filmes demais esperava encontrar um corpo, ou pelo menos sinais de briga, mas não havia nada disso.

A sala estava igual ao que se lembravam: totalmente desinteressante. Sofá velho, mesa de madeira simples, tevê... Caminharam pelo apartamento com cautela, fazendo pouco barulho e evitando os objetos. Havia comida na geladeira, a cama estava arrumada, mas não acharam mochila e nem carteira.

— Será que ele só saiu? E vai voltar daqui a pouco? — perguntou Von.

— Pode ser, mas... tem algo neste apartamento que é meio perturbador.

— O quê?

— Não consigo dizer bem. — Art fechou os olhos por um instante, enchendo os pulmões com o ar do apartamento. Von imitou o gesto.

— Não tem nada aqui, Art.

— É, eu sei, mas... tenho a impressão de que ele não esteve aqui.

— Tipo hoje?

— Tipo em meses.

— Meses? Mas... tá tudo arrumado, limpo... Se estivesse abandonado teria pelo menos poeira — disse Von, passando os dedos pelo balcão. Olhou para eles e arregalou os olhos.

Art ergueu a mão rapidamente. Tinha passado os dedos pelo mesmo balcão, mas não vira poeira alguma... Não até aquele momento. Agora os dedos estavam pretos, e a superfície do balcão tinha marcas distintas na camada espessa de poeira que permeava o apartamento todo.

— Não tem nada aqui — repetiu Von, olhos fixos na poeira dos dedos. Não parecia acreditar nela, mas a poeira parecia não se importar com isso. — Não tem como ter ignorado isso, tem?

— Improvável. Poeira se nota... mas há a possibilidade — disse Art.

— Eu vou procurar resquícios nos outros lugares.

Art concordou, e se separaram. Passaram mais meia hora no apartamento, ora silenciosos, ora andando em círculos... Ninguém bateu à porta, o telefone não tocou, e Seh não apareceu. Os livros estavam lá, as roupas, e havia até algum dinheiro em uma gaveta.

Art voltou à sala e encontrou Von deitado no sofá.

— Nenhum sinal. De nada. Este apartamento é tão mole quanto a casa da minha mãe — disse o jovem, sentando-se.

— Ele realmente não esteve aqui em mais de um mês — disse Art. Von esperou por alguma explicação, mas ela nunca veio, e ele se conformou com isso. Estaria o colega brincando com ele? Propositalmente deixando difícil a ele entender até onde suas habilidades chegavam?

— Bom — continuou Von —, isso foi meio inútil, apesar de que eu nunca tinha visto algo como essa coisa da poeira... A gente teria notado se fosse, sei lá, a Lena fazendo, não?

— Teria.

— De qualquer forma, isso me deixou com um gosto ruim na boca. — Von penteou o cabelo com uma das mãos, por acaso olhando para a outra e lembrando-se que as palmas estavam cobertas de poeira. Parou, alisando o cabelo agora imundo, e tentou sem sucesso ignorar o desconforto.

— Digo o mesmo... — disse Art, torcendo os lábios como se a metáfora de Von fosse literal.

— Tamos assumindo coisa demais. A gente não notar a poeira pode ter sido uma coincidência. Ele pode ter viajado nas férias e passado o mês fora. Talvez ele esteja só na casa dos pais dele, vamos dar uma passada lá.

Apagaram as luzes e saíram do apartamento, deixando-o da mesma forma que estava quando chegaram.

— E tranca a porta de novo — disse Art, com os olhos já no elevador.

Von apertou a maçaneta com força, obedecendo. A fechadura estalou, e cinco minutos depois já estavam dentro de um ônibus para os confins do sul da cidade.


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