Capítulo 9: Confiança (III)

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— Não. Não pode ser — disse Von, deixando a colher plástica cair dentro da lata de feijões. — Ele tava mentindo, o Livro não pode ser coisa dele...

— Ele foi bem convincente — disse Klen, reclinando-se no amplo sofá que arrastara até o meio do supermercado.

— É, deve ter sido, mas... Era vantajoso mentir. Tiraria o cara da cidade, e talvez até mandaria todo mundo de volta. Mas parece que não acreditaram nele...

— Ou acreditaram, vai saber — disse Jo, bebericando o chá que ela mesma esquentara. Estava sentada em um pufe rosado. — Podem ter tentado matar todo mundo por acreditarem que ele ia resistir, ou pra esmagarem logo o incômodo... Mas eu já vi muitos mentirosos bons, e se o Art estava realmente mentido ele é o melhor de todos.

— Ele tem que estar mentindo — disse Von, instantaneamente se sentindo idiota pela simplicidade de suas palavras.

Mas qual outra opção existia? Se Art estivesse falando a verdade, o que ele teria ganhado fazendo um livro falso para atrair a atenção? Colocando todos em perigo... Não havia lógica alguma. Art podia ser um tanto, bom, mau de vez em quando, mas não era burro. Precisava de motivos para bolar aquele esquema elaborado, e Von não via nenhum.

— Eu vi o Livro. Não era falso — disse Von, triunfante por ter achado um bom ponto. Não demorou nem um segundo para perceber o erro em sua lógica, que Gaen explicitou:

— Mas você leu o Livro? Art é poderoso. Pode ter feito uma sugestão terrivelmente forte, que enganaria qualquer primeiro olhar — disse o homem de terno, bebericando uma garrafa d'água, ereto em sua cadeira simples de madeira.

— É... — Os outros viram a decepção nos olhos de Von e deixaram o jovem com seu silêncio. A mulher, Jo, fazia algum tipo de efeito relaxante, algo que ela chamava de "massagem cerebral", para ajudá-lo a descansar. No começo Von ficou receoso, mas ela não demonstrou nenhum sinal de hostilidade, então ele deixou-se relaxar. Se o que eles dissessem fosse verdade, teria que estar pronto.

— Ainda vão demorar mais um pouco — disse Cennen, sentado na grande poltrona acolchoada. — Eles têm a confiança de décadas, entenda. Acham mais prudente fechar tudo e garantir que você não vai escapar, mesmo que demore mais.

Cennen ficara encarregado de observar a cidade lá fora, assegurando-se que não seriam pegos de surpresa. Logo depois que entraram Von também checou a história do bloqueio. Sentia grandes paredes pela cidade, blocos azuis meio translúcidos. Não entendeu exatamente o que eles faziam, mas não se sentiu especialmente tentado a ir olhar. A cada segundo tinha uma rota de fuga a menos. Não que estivesse planejando fugir; não sairia da cidade antes de encontrar Art. Se ao menos tivesse alguma ideia de como fazer isso...

— Mas não entendi, se eles viram potencial no Art, por que tentar matar ele? — disse Von, meio que para si. Os Mantos se ergueram, os homens tentando sem sucesso olhar para Jo.

— A minha irmã era promissora — disse Jo. — Era poderosa. Tinha uma fé inquebrável, e força de vontade difícil de se achar. Era ótima. — Todos os outros baixaram os olhos, menos ela. Ou engolia muito bem as emoções ou estava completamente em paz com aquela história, a ponto de tirar um pequeno sorriso dos lábios. — Eles a acharam, viram seu valor, testaram ela, e pediram... Exigiram que ela se juntasse. Ela negou, e acabaram com ela. — O resto seria difícil de dizer, Von compreendeu.

— Então eles podem querer vir aqui só me pedir pra se juntar a eles?

— Pode ser — disse Jo. — Mas pode ser também que o Art ter feito o Livro pra obrigar eles a virem até aqui seja encarado como uma afronta muito grande para ser perdoada. Imagina, são tipo velhos teimosos, mas com poder suficiente para fazerem o que quiserem. Pode não ser lógico eliminar alguém que poderia ajudá-los, mas eu desisti de esperar lógica deles da mesma forma que desisti de fazer meu avô entender telefones.

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