Capítulo 8: Como Nós (III)

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Von acordou com um sobressalto, aterrissando na realidade com tanta força que matou o sono que ainda restava nele. Fez uma careta cansada, tentando entender por que sua cama estava tão apertada e dura.

Não havia camas à venda no supermercado, mas havia equipamento de camping, então eles usaram sacos de dormir e tapetes como substituto. Algumas velas ainda queimavam, seu brilho oscilante quase sendo engolido pela escuridão. Havia grandes janelas no teto baixo, mas a cidade inteira estava apagada. Normalmente o céu não ficava tão escuro. Alesia sempre reclamara disso.

Von esticou os braços, no último momento arregalando os olhos e tentando parar antes de socar Trevor na cara, mas seu punho encontrou o nada. Apoiou-se no cotovelo e coçou os olhos. As sombras dançavam nos outros sacos de dormir, mas estavam ambos vazios. Von checou o relógio interno: ainda madrugada, dormira só uma hora. Inspirou profundamente e expulsou o sono e cansaço do corpo. Devia ter feito isso antes, pensou, saindo do saco de dormir e penteando o cabelo com a mão. Mas não gostava muito desse tipo de truque: muitas variáveis, muitas pequenas etapas biológicas que podiam dar errado e ferrar com ele. Preferia dormir de verdade. Desfez a oleosidade nas mãos, enchendo o corpo com energia e dando uma checada geral nas redondezas. Bocejou e saiu caminhando pelo supermercado.

Encontrou Trevor num dos corredores, olhando a limitadíssima seleção de livros que o supermercado vendia.

— E aí Trevor — disse Von, aproximando-se.

Quando viu os sacos de dormir vazios, imaginou que os dois estariam juntos. Conhecendo Art, provavelmente não dormiu muito. Devia estar por aí, olhando a cidade, procurando Seh... O que será que Seh estava fazendo? Lembrou do diário que leu na mente de Raffes, aquele que, concluiu depois, Art tirou do apartamento de Henderson. Não fossem as circunstâncias, Von tranquilamente diria que era só um romance de fantasia, como aquele que Trevor folheava.

— Oi Von — disse Trevor, fechando o livro e fazendo uma careta ao perceber que não marcara a página. — Também tá sem sono?

— Alguma coisa me acordou, sei lá — disse Von, bocejando. Ainda tinha a cabeça pesada, mas seu truque para tirar o cansaço do corpo funcionara surpreendentemente bem. Mais uma vantagem de estar praticamente sozinho na cidade. — E você? Ficou olhando o que tá acontecendo lá fora?

— Fiquei. Parece que a universidade caiu...

— Sério? — disse Von, olhando ele mesmo. — Caiu mesmo, encaixou certinho...

Trevor concordou com a cabeça, distante, e ficou em silêncio. Von pensou em perguntar se ele tinha ideia de onde Seh poderia estar, mas as memórias ainda eram muito frescas, difíceis de processar. Pelo menos Trevor não estava pirando com a situação, o que provava no mínimo uma coisa: algumas das lições de Seh permaneceram.

— Então. Você deve estar bem confuso a respeito das... coisas — disse Von, por fim. Só faltou Trevor verbalmente agradecê-lo por falar.

— É — disse Trevor, a curiosidade estampada na face.

— Bom, vai lá, pergunta. Se os moles não voltaram pra cidade é porque ainda não acharam o Livro. E, se até agora não vieram falar com a gente, não vão vir tão cedo.

— Acho que isso é uma das coisas que não tô entendendo. Quem viria falar com a gente? Parece que tem uma organização aqui. O Rocan falou em iniciados, deu a entender que tem bastante gente... — Ele tirou os óculos, limpando-os na camisa. — O Seh nunca falou nada assim. Ele não parecia ter nenhum grupo... Naquela época ele nem nos apresentou o Henderson.

— É. Acho que, a tudo que sabemos, o Seh é uma exceção. — Von tossiu, tomando o tempo para reorganizar o discurso. Só de pensar em Seh via tantos pontos para discutir que perdia o fio da meada. — Eu não sei mais do que o que o Cennen falou lá no shopping. Somos uns poucos milhares. O Merriam nos ensinou que tem tipo uma hierarquia. Eles chamam de crianças aqueles que, como o Seh diria, foram recém-abertos ao verdadeiro. Depois disso, há os iniciados, os que conseguem ler pensamentos superficiais, estabelecer diálogo nas mentes e trocar a visão de lugar, não importa se em curtas distâncias. Eu nunca entendi direito quando, mas em algum ponto depois de iniciado você se torna um proficiente. Acho que o ponto de se tornar um proficiente é só ficar por aí tempo o suficiente. Provar que você consegue fazer coisas que se confundem com coincidência, e fugir da Consequência. A última categoria que sei é a de adepto, mas deve ter algo depois.

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