As altas e densas árvores cobriam os dois lados da avenida como uma muralha, formando uma vista peculiar. Uma reta sem fim, o verde, sempre idêntico, cercando-a. Não era larga o suficiente para a velocidade que a maioria dos veículos tinha, e nos primeiros dias o homem temeu por sua vida. Se algum carro desviasse da rota e viesse na direção do caminhante, mesmo com tudo que ele era capaz, não teria muito o que fazer. Merriam sentia os carros passando ao seu lado, tão próximos que levantavam seu sobretudo, e pela primeira vez não ligou. Era uma longa caminhada até a margem norte do lago.
Podia pegar um ônibus, um táxi, diabo, se quisesse nem teria que pagar, mas gostava da caminhada. Era o tempo que tomava para pensar, o ar carregado com os aromas das árvores e do lago clareando sua mente. Meditava, pé ante pé, nas três horas que demorava para fazer o percurso. Já praticamente nem pensava no que o levara até ali, tanto por não ter descoberto nada quanto pelos seus novos interesses.
Havia algo de estranho na cidade. Visitara-a há muitos anos, quando recém teve a mente aberta para a vida, e seu professor lhe assegurou que era um lugar tranquilo. Voltou anos depois, mais experiente, e comprovou. Era uma cidade ordinária. A universidade era meio estranha, o tipo de lugar cheio de lendas interessantes, mas nenhum de seus sentidos conseguiu captar algo realmente notável nela. Conformou-se, na época, que a cidade nunca teria destaque no estado, e partiu para a capital.
Sua reação quando lhe disseram para ir para lá, então, foi uma lógica risada. Siman e Gaen vieram com grandes argumentos, percepções estranhas que tiveram, leituras, movimentos... Mas Merriam riu deles novamente, dizendo que aquilo devia ser ressonância de alguma das cidades mais ativas. O que realmente o convenceu a ir foi Jo:
"Não Merriam, presta atenção. Tem algo naquela cidade. Para com a sua fé de que não tem e abre a cabeça. Sente." Ela inspirou, fechando os belos olhos, sempre ao lado de Siman. "Tem alguma coisa lá."
Todas as vezes que Merriam ignorou um conselho de Jo ele se arrependeu. Saiu em direção à cidade por alguns motivos: por causa do conselho dela, porque a Capital andava num nível astronômico de chatice, porque viajar era um bom jeito de aprender... E porque, lá no fundo, também sentia. Havia algo esquisito.
Pôs os pés na cidade e sentiu. O ar pesava a experimentação, manipulação, poder. Normalmente, quando Gaen percebia algum movimento, era uma nova criança. Não era comum: a última vez que aconteceu foi há dois ou três anos. Sempre que ouviam boatos e sentiam algo, essa era a primeira possibilidade. Alguém tinha de ir lá, ver a criança com os próprios olhos, avaliá-la, e, com sorte, impedi-la de se matar. Esta última parte costumava ser a mais difícil. Todas as crianças subestimam a Consequência.
Mas, sentindo a cidade, achou que não era nenhuma criança que nascera ali. Sentia-se à frente de um enorme quadro negro, colossal, cheio de... rastros. Pó de giz de uma centena de escritas apagadas sem muito esmero, pedaços de letras ainda visíveis...
Algo grande ocorrera ali. Algo inacreditável.
Mas, no final, era só uma sensação. Caminhou pela cidade por semanas, sentindo, procurando, indo a bares, a bibliotecas, a escolas e prédios e parques e não descobriu nada. Não sentiu nada que justificasse o sentimento. Achou uma dúzia de localizações interessantes, entretanto. Lugares onde, como ele costumava chamar, os olhos do universo não caíam, e as coisas eram mais fáceis. Nenhum desses lugares era de alto nível, mas um adepto poderia muito bem ter se instalado ali para conduzir seus estudos. Foi num desses que encontrou os quatro.
"É um caminho sem volta", disse a eles.
Depois disso praticamente se esqueceu do que tinha levado-o até ali. Nunca tinha tomado discípulos para si, mas passou boa parte da vida pensando em como seria fazê-lo, como mostraria os conceitos, levá-los-ia para o lado certo... Não cometeria os erros que cometeram com ele, nem os erros que via os outros cometerem. Faria de suas crianças exemplos para a comunidade. Talvez para o mundo.
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Princípios do Nada
Misterio / SuspensoE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...