O Apartamento de Henderson

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Art subia em silêncio. Uma velhinha de rosto simpático dividia o elevador com ele, mas o jovem não estava com a mínima paciência para conversas frívolas. Fez a mulher ignorá-lo tão bem que até Lena o invejaria, e aproveitou a solidão para respirar fundo algumas vezes. Sentia o corpo tremer a cada inspiração; um espasmo violento, de cima a baixo, fazendo-o se sentir mole e idiota. Von riria de mim agora.

Ele tinha, claro, um motivo para estar tão ansioso: finalmente entraria no apartamento de Henderson.

Naquelas últimas semanas Art sentiu um fascínio talvez não saudável pelo prédio. Estudou-o meticulosamente, sempre de longe, olhando sua forma, sua sombra, seus frequentadores. Uma construção totalmente ordinária, alta, gorda, chata. Mundana. Ficou tentado a se tornar invisível e imaterial e ir olhar de perto, como fez nas férias, mas temia ser notado. Se Seh ou Henderson o descobrissem, seria o fim de tudo.

Bocejou enquanto a senhora descia do elevador, percebendo que estava com sono, e fechou a cara. Continuou dormindo porque achou que era uma boa maneira de esconder suas capacidades, mas fora inacreditavelmente tolo. Alguém tentara invadir seus sonhos. Que venham. É só o começo.

A porta do elevador se abriu mais uma vez e Art caminhou para fora, controlando o palpitar acelerado de seu coração, dando firmeza às pernas trêmulas. Assoviava, na vã tentativa de se distrair. Encontrou a porta e encostou na maçaneta, fazendo a fechadura estalar. Respirou fundo uma última vez e abriu a porta.

Aquele era, sem a menor sombra de dúvida, o apartamento mais comum que Art já vira na vida. Sofá, televisão, mesa, cozinha. Corredor, dois quartos, banheiro. O que ele esperava? Um círculo no meio da sala, brilhando com símbolos que ele desconhecia? Móveis flutuando, animais falantes...? É claro que não. É óbvio. Deixar algo exposto assim seria estúpido.

Não, não, não, não. Não com Seh e Henderson. Seh tinha feito aquela caverna no jardim dos pais. Eles não eram tão precavidos assim: tomavam riscos. Havia algo naquele apartamento. Art apostaria um braço nisso.

Fechou a porta atrás de si, analisando os arredores. Não sentiu barreiras, alarmes ou armadilhas. Não sentia nada fora do comum, a não ser...

— Caralho.

Algo enganava seus sentidos. Uma sugestão inacreditável, ao mesmo tempo tão sutil que ele não percebera antes e tão forte que era agora inconcebível ignorá-la. Sentiu-se olhando para o horizonte e percebendo que uma das montanhas era, e sempre fora, um colossal urso.

Caminhou pelo apartamento e se sentou no sofá, pensativo. Será que existia sofá? Justificaria um efeito tão forte. Só de pensar em trespassá-lo Art já sentia a dor da Consequência. Como diabos passaria por aquilo?

O jovem sorriu. Não preciso passar.

Girou o pescoço num arco amplo, estendeu os braços em cruz e encheu cada centímetro cúbico dos pulmões de ar, depois um pouco mais. Abaixou-se e apoiou as mãos no chão, afastando o tapete para apalpar os azulejos. Sentiu o piso, frio, e mesclou seus sentidos a ele, integrando-se às paredes do apartamento... Havia algo muito errado, provavelmente relacionado à sugestão que sentira antes, mas mesmo com ela sentia as vibrações.

Art expirou.

O chão todo vibrou com as colisões das partículas do ar, uma oscilação mínima, acompanhando o hálito quente do jovem. Vibrou, cada vez mais lento... E parou. Art sentiu os olhos voltarem nas órbitas. Falou baixo, rápido, recitando as palavras que ele mesmo criara há muito, no vermelho e negro.

Palavras eram desnecessárias, como gestos, desenhos, varinhas e cajados. Mas a fé de Art ainda pregava que olhar o passado não deveria ser tão fácil, sem transtornos, sem custos, principalmente quando planejava ver mais do que uns poucos dias atrás. As palavras eram seu jeito de se convencer que conseguiria.

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