Demoraram alguns segundos para perceber o que o sumiço de Von realmente significava. Trevor inicialmente achou que o amigo tinha disparado à frente, momentaneamente oculto pela sombra, mas os postes no entorno da praça não revelaram nada. Se Rocan ficou surpreso, escondeu bem.
— Usou o escuro, e usou bem — disse ele. — Hrm. Eu não deveria ter dito isso. Apesar de que... — Ele deixou a fala morrer, os olhos se fechando pesadamente por um instante, e depois se levantou.
— Onde você vai?
— Até o tal bosque, continuar a conversa — disse Rocan, começando a caminhar. — Você não vem?
Meia hora depois lá estavam os dois. Não havia alma viva no ponto de ônibus da biblioteca, o mais movimentado de toda a universidade. Até o baixo ruído das lâmpadas era audível, alto em comparação com os sons dos carros que circundavam o campus. O concreto ficava amarelado com a luz dos postes, uma cor estranha e enjoativa.
Caminharam pelo campus tão quietos como passaram a viagem de ônibus. Trevor se perguntava se Rocan não seria capaz de, como Von, sumir e aparecer em outro lugar, mas temeu que, se perguntasse, o homem simplesmente desapareceria. Entraram no bosque, e não precisaram caminhar muito para ver as luzes. Logo viram o fogo rasgando o escuro.
Quando Trevor deu conta de si, estava de joelhos na poça de sangue que havia à volta de Art. O amigo estava deitado no chão ao entorno dos tocos, inconsciente, mas respirando. Só depois de se certificar que ele estava vivo que parou para olhar os arredores. Havia vários homens no chão, usando roupas pretas e segurando pistolas. Fora o cadáver com a cara derretida, os outros não tinham ferimentos visíveis. A cena era iluminada pelo fogo, que envolvia algumas das árvores próximas, quente e vivo. As sombras dançavam pelo rosto de Art, deixando difícil definir se ele estava preso numa expressão de dor ou só dormindo.
Perto de Art havia uma esfera escura. Uma forma imensa, grande como um carro, que flutuava centímetros acima do chão. Parecia destacada do resto da realidade, não pertencente ao resto do entorno, tão escura que era difícil de se focar.
Rocan se abaixou ao lado de Art, passando os dedos pelo sangue.
— Curioso. Isso parece Consequência.
A menção fez Trevor gelar, e sem saber por quê. Foi uma reação automática: mal lembrava o que aquele termo significava. Devia ser algo ruim.
— Por que curioso?
— A Consequência normalmente... Explode cabeças, se você me entende. E ele está bem vivo. — Rocan ergueu o punho esquerdo de Art, tirando o pano empapado enrolado em seu braço e expondo a pele à luz do fogo. — Veja.
Pela posição da poça de sangue, parecia Art sangrava a partir do braço. Trevor procurou algum sinal de corte na pele alva, e não achou. Não achou nem um arranhão. Só alguns pontos escuros... Pontos que cresciam, distribuindo-se pela pele, e pareciam se mover... Juntaram-se numa gota, que logo escorreu e juntou-se à poça.
— A Consequência age de formas peculiares. — Rocan deixou o braço cair. — Está expulsando o sangue dele do corpo, atravessando a pele.
— Podemos fazer alguma coisa?
— Acho que nem precisamos... — disse Rocan, passando o polegar pelas costas de Art. — Ele perdeu muito sangue, mas... Olha só, veja você... — Ele riu, visivelmente impressionado. — Acelerou o metabolismo. A medula está produzindo sangue suficiente para dez pessoas. E manteve isso todo esse tempo, mesmo inconsciente...
Um som próximo interrompeu a fala. Os dois se viraram ao mesmo tempo, vendo a esfera negra vibrar. De súbito, Von saltou de dentro dela, atravessando o escuro e caindo bem na frente deles.
— Ah, são vocês. E aí.
— Von! — Trevor ergueu-se. — O que aconteceu? O que é essa bola preta aí?
— Apareceram esses caras aí. O Art tomou conta dos moles e de mais um, e eu cuidei do outro. Um deles ainda tá vivo, nessa bola aqui, e tô tentando tirar alguma informação dele.
Rocan olhou para a esfera negra por um momento antes de falar.
— Como que um deles ainda está vivo, depois de derrotado? — perguntou. — Os iniciados da Presença desaparecem depois de derrotados.
— Por isso a esfera escura. — Von sorriu. — Corpo negro perfeito: nada entra, nada sai.
Rocan deu uma última olhada nos corpos ao redor dos tocos antes de se levantar.
— Bom. Isso reforça meu ponto. — Ele limpou o sangue dos joelhos e arqueou as costas para trás, fazendo uma careta enquanto as vértebras estalavam. — Temos algumas horas até a Presença cair nesta cidade. Quando ela fizer isso, vocês não terão chance alguma. — Ele caminhou em direção às árvores. — Se quiserem sobreviver, deem o Livro pra mim. Garanto que é a melhor escolha que vocês têm. A não ser que queiram que a cidade inteira fique assim. — Ele passava do lado das árvores em chamas, o fogo estalando alto e deixando sua voz difícil de ouvir. — Me deem o Livro e tudo acabará bem. Chamem meu nome e eu encontrarei vocês.
Rocan continuou caminhando, mesclando-se com o escuro do bosque e desaparecendo. Von agachou-se do lado de Trevor, ajudando-o a levantar Art.
— Você confia nesse cara, Von?
— Não sei — respondeu Von, enquanto arrastava Art para fora do sangue. — Ou ele fala a verdade... Ou ele engana até os métodos de Seh.
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Princípios do Nada
Mystery / ThrillerE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...