Capítulo 5: Os Mantos da Capital (III)

8 0 0
                                    

Von se contorceu preguiçosamente na cama, sorrindo, vagamente consciente da própria existência. Perdia-se no campo indistinguível entre memória e sonho, e ia aos poucos reorganizando sua lógica. Separava as experiências sonhadas das vividas metodicamente, uma para o esquecimento quase imediato e a outra para o registro, até que chegou num impasse. Não era memória; não era sonho. Não era sonho por ser grandioso demais, perfeito demais, cheio de coisas que ele não sabia. Não era real porque não podia ser.

O colchão agitou-se e Von caiu na realidade num espasmo. Rolou da cama e bateu a cabeça. Abriu os olhos pronto para explodir alguém.

Alesia encarava-o, olhos arregalados, sentada na cama que há pouco o conteve. Quarto da casa do lago. Sol lá fora. Von arfava, e, apesar da agressividade, estava caído com os membros embaralhados de forma um tanto ridícula. Ouviu um estalar atrás de si, e uma montanha de cobertores deslizou do armário onde ele batera a cabeça. Quando conseguiu escapar do soterramento, ouviu as gargalhadas de Alesia.

— Desculpa — ela disse, ajudando-o a se levantar. — Mas o seu susto, a tensão, e depois...

— Realmente, hilário — disse ele, escapando das cobertas e se sentando na cama. Sentia-se pesado. A cabeça doía.

— Como você tá? — perguntou Alesia.

Havia algo na cabeça de Von, uma memória, uma sensação estranha, algo importante que ele precisava pensar. Lembrou de Art, e tudo foi para o segundo plano.

— O que aconteceu? Como eu vim parar aqui? — O Sol na janela o incomodava. Era baixo, matinal. Quando Art começou a mexer na sua cabeça, já era quase meio dia.

— Foi difícil. O Art falou que era algo complicadíssimo, intricado... Ele pareceu meio maravilhado, na verdade. Tinha algo travado na sua cabeça, ele tava certo, mas o tempo que demorou pra tirar foi longo demais. Horas e horas de trabalho. Nós duas ficamos observando, sentindo, e parecia que tava tudo certo, ele não fez nada agressivo. Quero dizer, eu acho que não fez. Eu não tava entendendo quase nada. Mas a Lena entende mais que eu, e segundo ela foi tranquilo. Mas demorou. Quando terminamos tava todo mundo exausto, principalmente o Art. — Ela virou o rosto, mas Von teve um vislumbre da expressão aflita dela. — Ele praticamente desmaiou, e você não parecia dar sinais que ia acordar...

— Bom, acordei, obrigado pela recepção calorosa. Depois todo mundo dormiu?

— É, o Art mal falou se funcionou ou não. Ele disse que dependia mais de você, algo assim. Disse que era algo orgânico, e que, mesmo que ele desfizesse, em alguns minutos cresceria de novo. Ele disse umas coisas que eu não entendi direito.

— Bom, pelo menos eu não morri, virei um vegetal, ou um escravo. Falei, não dá pra julgar o Art pelo que você viu. — Ele coçou a cabeça. — Mas não funcionou, então? Não lembrei de nada novo... Era algo me impedindo de lembrar de algo, é isso?

— É, algo assim. Que nem a coisa do Seh e o ano dele fora... — Alesia falou e seus olhos se arregalaram. Ela fechou a boca de súbito, assustada, e olhou para Von.

— Ah, sei — ele disse, desinteressado.

Os lábios de Alesia se separaram, sem vida, os olhos ainda arregalados.

— Você sabia do ano que o Seh passou fora?

— Claro. — Ele riu. — Como assim? O cara ficou um ano fora! Estranho seria não notar. Todo mundo... — Von franziu o cenho. — Ah, ele tinha colocado uma trava pra vocês não notarem, é verdade.

Havia algo, uma informação na ponta da língua... Falando daquilo Von se sentiu como se estivesse prestes a se lembrar de algo importante, mas que ficava fugindo sempre que ele chegava perto. Era muito aflitivo, quase tanto quanto a expressão de Alesia. Ela finalmente reuniu forças para falar:

Princípios do NadaOnde histórias criam vida. Descubra agora