As Férias de Von (IV)

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Von estava eufórico entre as árvores borradas. A neblina descia pesadíssima, suficiente para ofuscar o próprio sol. Ele sentia as implicações disso. Sozinho entre as árvores, ninguém podia vê-lo. As únicas coisas que o limitavam eram sua própria fé e força de vontade. Podia tudo.

Ouvia ecos das vozes dos outros, distantes o suficiente para demorarem para encontrá-lo. Sentia Alesia perto, mais perto que os outros, e tentou fazer silêncio. Se ela soubesse o que ele queria fazer seria contra. Estava sendo contra a maioria das coisas que ele e Art propunham. De Von início simplesmente não conseguiu fazer o que queria, mas foi invadido por uma ideia, um método... Palavras distantes sussurravam para ele, ao mesmo tempo instruções e epifanias efêmeras. Concentrou-se, e...

O mundo se contorceu. As árvores racharam e se desfizeram na frente de seus olhos, colidindo num ponto só, apertando-se e espremendo-se e esmagando-se numa esfera, menor e menor, engolindo a grama, o chão, o entorno do lago, Alesia, ele próprio. Engoliu o resto da existência, e a única coisa que restou na negritude foi sua consciência, subitamente percebendo que era um sonho. O sonho de sempre.

Mas aquele não era o usual limbo logo antes do acordar: demorou demais, ele estava consciente demais, e tinha medo. Medo pois não simplesmente despertou. Foi desperto.

Dias antes colocara um tipo de alarme dentro da cabeça, para ser acordado caso alguém tentasse invadi-lo. Uma medida preventiva contra Siman, que ele esqueceu de desativar quando achou que não precisaria mais se preocupar.

Instrumentos metálicos precisos pareciam tatear seu cérebro, como se fizessem uma cirurgia, abrindo-o. Tentou segurá-los, mas não conseguiu. Sentiu o sangue voltar aos membros, e abriu os olhos. O corpo era pesado e duro, frio, quase sem tato. Não conseguia mover um único dedo. A única luz que entrava em suas retinas vinha das estrelas.

Bem próximo, as pupilas dilatadas mergulhando nas suas, viu Siman. O pescoço dele estava tenso, as veias saltando para fora até a testa, e tinha mais vermelho que branco nos olhos. Seu olhar tinha concentração, mas também raiva, ódio, superação. Pelo pouco que Von via, concluiu que Sim tinha as mãos na cabeça dele. Puxava. Abria sua mente e puxava, tentando sugá-lo.

Von não conseguiria segurar. Siman agiu rápido: já estava fundo na mente dele, e abria cada vez mais. Mas não caçava entre os pensamentos, como Art faria: estava querendo puxar tudo de uma vez. Arrancar tudo num puxão só e torná-lo um vegetal.

Von procurou por algo no campo de visão, mas não conseguia mover os olhos; não conseguia nem piscar. Imaginou o cabelo de Siman em chamas, ou as roupas dele, ou o interior do cérebro dele, e tudo que conseguiu foi uma dor aguda no peito. Visualizou um pedaço do teto caindo na cabeça de Sim, e sentiu o braço esquerdo formigar.

A fé de Siman era forte no mundano. De alguma maneira ele forçava-a mais, anulando tudo que Von tentava. Sentia a Consequência. Mas era sua única alternativa, não? Se Von fizesse Sim explodir seria levado por ela, sim, mas se não fizesse nada morreria de qualquer forma.

Que merda hein Von, ele pensou, a consciência saindo. Terminar assim, depois de tudo... Sentiu uma lágrima escorrer, sem saber se era só o corpo tentando manter os olhos irrigados ou algo a mais.

Tinha se aproximado da morte algumas vezes antes, nos embates com Art... Mas daquelas vezes foi tão rápido. Ali, paralisado, tinha tempo para pensar. Não que seus pensamentos fossem muito diferentes da última vez. Lembrava-se de tudo, e ouvia-os repetidos, ainda tão verdadeiros...

Não vou conseguir me formar, deixar meus pais orgulhosos. Não vou conseguir voltar a ser amigo de Art, nem estar lá quando Cella precisar, finalmente ganhar uma partida de Go do Trevor, ou discutir as ideias malucas de Seh, ou... Pedir desculpas pra Alesia.

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