Epílogo

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— E aí? O que você achou?

Cella limpou as lágrimas e suspirou, entrando na sua expressão lógica. Torceu a boca, olhos meio arregalados. Franziu o cenho, apertando os lábios numa linha, e colocou a pilha de papéis em cima da mesa.

— É... Peculiar, Trevor — ela respondeu. — Não é o tipo de coisa que eu costumo ler. É meio sangrento. E, você sabe, é a nossa vida. Não é uma parte que eu gosto. Mas, apesar disso... Lembrar foi legal. Você inventou as partes que você não viu?

— Segredos do ofício. — Trevor sorriu, enigmático. — Mas tá bem escrito? — ele perguntou, ajeitando os óculos grossos. Ainda não se acostumara com o peso da nova armação. Podia corrigir aquilo, livrar-se da crescente miopia para sempre, mas... Pra quê?

O apartamento era a metáfora visual do relacionamento dos dois. De um lado o tapete bonito, o sofá cheio de almofadas, os desenhos dos irmãos menores pendurados na parede, e os pôsteres de filme, desgastados. De outro, a estante abarrotada, as cadeiras de madeira dura, a pilha de papéis em cima da mesa, e a máquina de escrever elétrica. Não parecia que os dois lados se encaixariam, mas era perfeito.

— Não sei. As emoções tão uma confusão. — Ela sorriu, pousando as mãos na barriga. O anel que Trevor fez brilhava no anular esquerdo dela. Criou-o do zero, cada átomo de ouro; a coisa mais incrível que já fez na vida. Mas isso porque eu ainda não conheci quem está aí dentro, ele pensou, olhando a barriga da esposa.

— Não é justo você falar sobre emoção, você tá trapaceando.

— Eu não consigo evitar! — Ela levantou um pouco a voz, os olhos ainda úmidos. — Você escreveu o final com raiva de mim, por isso que eu não consegui gostar. Dá pra sentir.

Trevor riu.

— Não ri! — ela disse, quase chorando, só fazendo ele rir mais. — É verdade, não é?

— Eu não sei de onde você tira isso. Eu, com raiva de você. É fisicamente impossível.

— Eu teria mais autoridade do que você para dizer isso. — Ela ergueu o nariz, sorrindo maliciosamente. Na parede atrás dela, perto dos desenhos, estava o seu diploma de graduação. E o de mestrado, e o de doutorado. Atrás de Trevor havia só uma prateleira com meia dúzia de livros: os seus livros.

— Eu não tava com raiva de você. — Ele pousou a mão na dela. — Mas talvez... Talvez eu tenha ficado com raiva deles.

— Da Presença?

— Não, não. Do Art e do Von. Eles podiam ter aparecido pelo menos uma vez. Eu sempre pergunto pro Cennen, e ele sempre fala que, se um dos dois tivesse feito algo no mundo, ele saberia.

— Ele ainda aparece muito?

— Ah, de vez em quando. Sempre que ele tem que fazer algo na cidade, encontrar alguma criança, ele me avisa, e a gente acaba batendo um papo. Ele sempre tem a necessidade de dizer que eu sou... — Ele engrossou a voz. — "O ser mais poderoso da cidade." Acho que ele não entendeu que eu tô feliz só escrevendo e vivendo com você. Acho que gosto mais quando o Gaen vem, ele é mais direto ao ponto. O Tom ia gostar dele.

— Falando em Tom — disse Cella, afastando a cadeira para conseguir se levantar sem virar a mesa com a barriga. Pôs-se em pé devagar, usando o ombro de Trevor como apoio. — Tá quase na hora de irmos pra casa dele. Ele disse que a Lea já tá andando! — Ela soltou uma série de grunhidos, o que Trevor acostumara-se a chamar de "ataque de fofura".

— Mas calma aí, você não terminou de falar o que achava!

— Eu te conto no caminho. — Ela já colocava um casaco. — É uma boa caminhada. Mas acho que eu não sou a melhor pessoa pra te dar uma opinião, Trevor. É um livro sobre a gente, não sou uma leitora muito confiável.

— Eu só queria saber se estava bem escrito. — Ele se levantou também. — Eu pessoalmente achei bom. Acho que tô pronto pra começar.

Cella parou de vestir o casaco, encarando-o.

— Sério?

— É.

Os dois olharam para o mesmo ponto na estante. Um livro grosso, capa verde. A única lembrança que tinham de Seh.

— "Os Tomos de Lerseh", esse vai ser o título — disse Trevor. — A língua em que o livro é escrito é bem econômica. Num só volume tem material pra sei lá quantos.

Trevor colocou o casaco e eles saíram do apartamento, caminhando com a maior calma do mundo pelas ruelas do centro.

— O que será que aconteceu com eles? — disse Cella.

— Eu não sei. Tô bem certo que o Art foi com o Seh, mas o Von... — Ele tirou os óculos, encarando o céu. — O Seh eu não espero ver de novo, ele até se despediu. Mas os dois... Sei lá, eu esperava ver pelo menos o Von.

— Um dia, quem sabe. — Cella pegou a mão dele. — A vida é longa, Trevor.

Quão longa eu quiser, ele pensou. Mas achava que não a estenderia muito. "Parte da vida é morrer", dissera Seh há muito, ou há pouco, ele não sabia. Dissera Seh em outra realidade, e depois gravou as palavras no livro de capa verde. Trevor achava a declaração curiosa. Vinha ao mesmo tempo de alguém que morreu diversas vezes — e, portanto, tinha mais experiência que qualquer um no assunto — e de alguém que não tinha motivo nenhum para temer a morte.

Sentia falta de Seh. Às vezes sonhava com ele, em algum lugar surreal, conversando descontraído e rindo. Queria acreditar que eram mais do que sonhos, mas não sentia nenhuma manipulação. Sabia, entretanto, que se Seh não quisesse, ele não sentiria.

— Olha ali, Trevor — Cella parou de caminhar.

Trevor se virou e viu do que ela falava. A Livraria Lima.

— Será que a moça que você tinha uma queda ainda trabalha ali? — perguntou Cella.

— Eu não tinha uma queda. — Trevor ficou vermelho. — Eu só achei ela parecida com você.

— Hmmm... — Cella levou um dedo aos lábios, pensativa. — Quase acreditei. — Ela deu um beijo na bochecha dele, puxando-o. — Vamos.

Mas Trevor não andou. Havia duas mulheres em frente à livraria, de costas para ele. Eram as duas mais ou menos da mesma altura, cabelos castanho-escuros, uma com um jeans esfarrapado e uma camisa listrada e a outra com uma calça preta e a blusa oculta pelo cabelo enorme. Ele demorou a entender por que elas chamavam a atenção dele. Uma percepção peculiar, que ele encarava como um cheiro, ou um gosto, ou só uma sensação, que ele associava a... A Cennen, a Gaen, e ao livro que terminara de escrever uma semana atrás.

Uma das percepções que Seh lhe ensinara. Um sentido a mais, que ele raramente usou mas ainda continuava lá, latente. Aquelas duas não eram...

Moles.

A voz de Von soou real na cabeça de Trevor, tão real que ele sentiu o coração acelerar. Só a minha imaginação. Mas as mulheres eram muito reais. Ele melhorou a visão, projetando-a, procurando os rostos delas refletidos na vitrine.

— Trevor?

A voz de Cella tirou a concentração dele. Ele coçou os olhos com força, espremendo-os, procurando, lembrando. De onde conhecia aquelas moças? Olhou mais uma vez, mas as duas não estavam lá.

— O que foi? — Cella repetiu.

— Você precisa perguntar? Você sempre sabe.

— Eu sei como você se sente. Não sei por quê.

— Achei que era alguém que eu conhecia — ele disse, distante. — Vamos.

Minutos depois, Trevor agradeceu a fofura infinita da filhinha de Tom. Com ela distraindo todos os presentes, ele podia pensar um pouco. De onde conhecia aquele rosto...?

Mas ele sabia. Ele sabia muito bem. Sabia que aquilo significava que não teria paz para sempre. Algum dia as coisas voltariam.

Mas, estranhamente, não sentia medo disso.

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