Capítulo 1: O Livro (I)

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A imagem de Von era interrompida pelo escuro entre a luz dos postes, aparecendo e desaparecendo a cada poucos passos. Ele não gostava daquilo. Caminhando em direção à sua casa, preferiu estar imerso no escuro, só ele, o asfalto sob seus pés, os seus sussurros e as estrelas. Como foi nos Picos, aos quais nunca retornaria. Atravessou o quintal malcuidado, as plantas altas e desordenadas quase engolindo as pedras chatas que criavam um caminho até a porta, e enfiou a chave na fechadura.

— Von.

O jovem virou-se rápido, a jaqueta de couro serpenteando com o movimento, os punhos fechados e os olhos arregalados.

— Ei, ei, relaxa — disse o homem parado perto da cerca, um sorriso que Von conhecia muito bem.

— Ah. — Não ouvira ninguém chegando. Não o vira ali antes. Estivera tão distraído assim? — E aí, Seh.

Seh ampliou seu sorriso. Parecia relaxado, o cabelo claro caindo nos olhos, as mãos nos bolsos.

— Eu tava querendo falar com você. Amanhã começam as reuniões, você vai?

Von franziu o cenho. Ah, as reuniões do grupo de estudos, do curso de Física na faculdade. Um tanto irônico para ele estudar justamente Física, um tanto infeliz. Não se importava com o curso mundano há um tempo. O livro que iriam estudar no semestre era... Fundamentos da Transferência de alguma coisa. Técnico, científico, ingênuo. Von começava a perder a paciência com esse tipo de coisa.

— Vou sim. — Em algum momento ele precisava estudar aquilo, certo? Antes de Von se perguntar exatamente por que precisava, Seh interrompeu:

— Escuta, Von. Aconteça o que acontecer amanhã... mantenha a calma. Não seja apressado.

Aconteça o que acontecer? Era uma reunião do grupo de estudos. O que poderia dar errado, eles iam encontrar algum cálculo integral difícil? Do que caralhos você tá falando? Falando assim, tão vago, parecia até que Seh entendia alguma coisa. Mas... claro que não. Seh era tão mole quanto qualquer um dos outros. Qualquer um fora os quatro.

— Só quis te avisar disso. Se cuida, Von. Até amanhã. — Seh ergueu uma mão, despedindo-se, e se virou, afastando-se. Von só percebeu que deveria tê-lo chamado para entrar e beber alguma coisa quando o amigo já tinha sumido no escuro da rua. Virou-se de volta para a porta e entrou em casa.

Logo se lembrou porque gostava tanto de morar ali. Silêncio. Tinha toda a calma que quisesse, não importava a hora do dia. Depois das férias que teve, precisava de um pouco de quietude. Mas o encontro com Seh o fez preencher o silêncio com ansiedade.

Conhecia-o há mais de... quinze anos? Dezesseis? Não saberia dizer sem pensar um pouco, e isso já atestava quanto tempo fazia. Estudavam juntos desde sempre, no mesmo colégio, e agora no curso de Física. Mas depois de entrar na faculdade Seh ficara tão diferente. Era igualmente passional com quase tudo que fazia, talvez até mais do que antes, mas havia uma serenidade... Esse pensamento, essa mudança indefinida mas crucial, sempre deixava Von inquieto. Pensando bem, porém, Seh podia muito bem pensar a mesma coisa a respeito do próprio Von.

Ele se jogou no sofá da sala, olhando o teto parcialmente iluminado pelas velas que acendera semanas antes, as únicas fontes de luz no cômodo. Uma noite de domingo antes do começo do semestre, a reunião do grupo de estudos, o próximo livro que iam estudar... Sentiu-se de volta no mundo que fazia sentido. Quem sabe os últimos meses foram só um pesadelo irreal, um ponto fora da curva, e tudo se resolveria. Art pediria desculpas, Lena estaria bem, Alesia voltaria a falar com ele... Quem sabe ele podia esquecer o que fez nas férias, e antes delas, nos Picos, e tudo voltaria à simplicidade feliz de antes da faculdade. Vai ficar tudo certo, pensou.

Ele riu, seco. Até Seh, que antes parecia não saber de nada, teve a necessidade de avisá-lo que algo estava errado. Von fechou os olhos na semi-claridade, as velas finas ainda muito vivas.

Não vai ficar tudo certo porra nenhuma.


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