Capítulo 11: Lena e o Livro (II)

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O corcel de Von pairava no ar, as enormes asas penadas batendo lentas, vigorosas, tudo branco como a honra. O próprio Von montava nele: alto, o torso musculoso reluzindo na luz que vinha sabe-se lá de onde, vestindo só uma calça marrom e erguendo uma enorme espada brilhante. O cabelo longo do amigo caía sobre os ombros esculpidos, louro e castanho. Tinha fúria nos olhos.

Não, tá errado. O meu cavalo deveria ser o branco. O Von tá sempre de preto.

Art montava um corcel negro, quase escuro demais para o olho ver. Sentia a crina batendo em seu torso nu, musculoso e oleado, e também o calor das asas de chama do animal. Também pairava, portando um longo chicote rubro, que caía até sumir no azul abaixo. O bater de asas fazia o cabelo negro de Art voar, roçando em suas costas.

— Termina agora, Art — disse Von, a voz ecoando entre as esferas que os cercavam. Pequenos planetas, alguns mortos como desertos, outros cheios de árvores. Havia garotas torcendo por Von em um deles; entre elas, Lena. Havia garotas torcendo por Art também, noutro; entre elas, Cella. Nos demais havia casas, barracas, um castelo. Um velho fumando observava, sem tomar partido. Uma mulher roliça olhava através da janela de sua casa, desinteressada, lavando louça. Sentada num planeta que continha só uma pedra, os olhos entediados, estava Alesia.

Aquilo era parecido com um filme. Ou cem. Não se lembrava. Além disso, não se lembrava do que era um "filme".

— Tolo! — disse Art. — Você sempre teve essa moral. Essa ética tola. Você vê atos. — Ele fez o chicote estalar, subindo do limbo abaixo e consumindo um planeta. — Eu vejo resultados.

O corcel branco avançou. Art movia o chicote com maestria, sem dificuldade graças ao braço enorme, cada fio negro cortando o ar a centímetros de Von. Chegava perto dos cabelos dele, dos ombros musculosos ou a espada, mas sem tirar sangue. O sangue só veio com a espada de Von, cortando através do aço esculpido que era o abdome de Art.

— Maldito! — gritou, soltando chamas negras dos olhos e recuando. Segurava o ferimento com a mão, e até as garotas da torcida pararam seus gritos ao ver o líquido negro, viscoso.

O chicote dançou mais rápido, negro e rubro, partindo os planetas, deixando um rastro de cinzas e riso. Von ria seu riso sarcástico, cheio, o riso que Art odiara tanto. A espada fazia o chicote recuar, o corcel era rápido, o riso enfurecia. Art sabia que seus golpes eram bons, seguravam o oponente no lugar, mas a raiva ainda vinha. Parou.

— Desiste, Art — disse Von, balançando a cabeça, fazendo o cabelo esvoaçar como num comercial. O que é comercial? — Entregue-se, e minha espada o purificará.

— Não consigo me comparar a você — Art deixou o chicote cair, os fios se apagando e sumindo no além abaixo. Segurou um sorriso. Já fizera aquilo centenas de vezes.

Von sorriu seu sorriso vitorioso de sempre, baixando a espada. Suava, o sol de algum lugar fazendo-o brilhar como alguma estátua dourada de um deus. As garotas da torcida iam à loucura, Cella quase chorando, mas Lena séria. Ela me conhece.

O chicote subiu, furtivo como uma serpente, vindo do além abaixo. Von virou a cabeça um segundo tarde demais.

— Hah! — riu Art, envolvendo a espada com o chicote e puxando-a para si, derrubando Von no processo. — Seu tolo! Sua derrota é sua... — Que parecido — ...Inocência... Sério, o que é um filme?

O chicote trouxe a espada com ele, mas rápido demais: Art não conseguiu pará-la. A lâmina pura perfurou o corcel negro, explodindo-o em fumaça preta antes que ele pudesse gritar, e jogando Art para baixo.

Aterrissou no planeta de Alesia, enterrado até a cintura. A garota usava uma regata branca, tinha o cabelo como era antes, mais curto, e o velho jeans-e-tênis. Não parecia nem um pouco menos entediada.

— E aí? — perguntou Art, usando os poderosos braços para tentar sair do buraco. — Como me saí?

— Não muito melhor que o Von. — Ela suspirou. — Vocês são muito idiotas pra minha cabeça de vez em quando, sério.

Art riu na poça de sangue e baba. Preciso contar esse sonho pro Von, pensou, naquele estado semiconsciente do despertar, antes da dor. Depois só gritou por alguns momentos.

Braço esquerdo quebrado em mais de um ponto. Alguma dor horrível no quadril. Pelo sangue, fratura exposta. Caíra de lado, da pior maneira possível para absorver o impacto. O mais preocupante é que sentia a cabeça mole. Isso é mau.

À frente, visível através de um dos bancos baixos de pedra, a cidade. Estivera tão concentrado na conversa com Henderson que se esqueceu de todo o resto. Conseguiu resistir à onda que quase o matou, mas perdeu o equilíbrio e caiu de cima do arco onde estivera sentado, a uns bons três metros do chão.

Se alguém me ver estou morto. Não estou em condições de superar qualquer tipo de Consequência.

Se alguém me viu não fez nada, eu morro daqui a alguns minutos. Vale a pena arriscar.

Art refez o corpo num estalo, rápido até mesmo para ele. O osso do braço esquerdo (o novo braço! Devia tê-lo feito mais resistente, de alguma forma) voltou para dentro, recuando e fechando a pele atrás dele. O crânio inflou e se soldou de volta no lugar, o sangue sugado para dentro do corpo como se ele fosse uma esponja. Alongou um pouco os músculos, testando tudo, e mal sentiu a Consequência.

Se eu ainda estivesse com o braço sangrando eu não teria saído dessa... Quando Kik explodiu seu braço levou a Consequência, que fazia o sangramento constante, com ele. Ou será que foi depois, quando Seh (ou Henderson?) o livrou da Consequência? Falando nisso...

— Henderson! — chamou, transformando o chão num alto-falante. Gritou de todas as formas que conseguiu imaginar, mas não houve resposta.

— Não tenho tempo para essa merda — sibilou, as palavras levadas pelo vento. — Preciso... — Tentaram matar todos da cidade. Os Mantos da Capital, Von e Trevor no supermercado, Alesia... — Merda.

Quando tempo ficara inconsciente? Viu a cidade, apagada e silenciosa, e viu também milhares de barreiras em todos os cantos. Menos no supermercado. Estão prendendo eles. Caralho.

Art correu entre os bancos e saltou. Viu a cidade abaixo de si, aproximando-se rápido, ele caindo livre de qualquer obstáculo ou preocupação... Por um segundo, talvez. Fez da pele vidro e dos músculos névoa, e voou. Voar não era trivial; sentia o peso da Consequência, que sobrepunha com a mente trabalhando rápido, nervosa. Nunca tinha feito aquilo fora do vermelho e negro, mas não era hora para se conter.

Não tinha a mínima ideia de para qual lado ficava o supermercado. De cima era tudo uma confusão de luzes e feixes de concreto, prédios estranhos, pequenas aglomerações de árvores... Nunca se dera ao trabalho de olhar um mapa da cidade, e agora se arrependia. Alguma coisa tem que ser igual daqui de cima. Alguma coisa eu tenho que reconhecer...

A universidade. Impossível de não ver; o espaço quase quadrado, uma batata semirregular, isolada pelas avenidas que a cercavam, com o bosque, as quatro ruas que a cortavam, as rótulas... Era imperdível.

Ok, uma rápida aterrissagem no campus, deve estar completamente deserto a essa hora... E depois eu volto pro supermercado. Eu paro no aberto, vou pro mato, reapa...

Seus pensamentos foram interrompidos quando pôs os olhos na universidade.

Um pilar de luz saía do bosque.

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