— Não tem mais ninguém na universidade — disse Art, em pé em volta da mesa na biblioteca. A percepção que efeito simples dava devia parar por aí. Mas, estranhamente, ela se estendeu. — Não tem ninguém no bairro todo. — E se estendeu. — E quase ninguém na cidade.
Art franziu o cenho, incerto com sua resposta, e mudou seu método. Olhou por cima do campus e viu as pessoas circulando pelo bairro, os carros na avenida, as pessoas dentro de seus apartamentos, as luzes nas cidades vizinhas... Recuou instintivamente, como quem espera levantar um objeto pesado e logo vê-se prestes a lançá-lo ao ar. Von encarou-o com olhos de compreensão. Levantou a mão, aberta, e fechou-a com força. Abriu-a devagar, expirando pausadamente, e Art achou que... Art viu uma microscópica pilha de areia nascer ali.
— Caras? O que tá acontecendo? — perguntou Trevor. — Parece que tem e ao mesmo tempo não tem gente por aqui.
— Eu vi pessoas andando por aí. Mas essa facilidade, parece... — disse Art, olhando para a pilha de areia antes de Von abanar a mão. Eles trocaram olhares, Art bestificado, Von sério.
Não precisavam falar, repetir a mesma coisa que disseram no primeiro dia nos Picos, ao mesmo tempo um mês e uma eternidade atrás.
Por algum motivo, tudo estava fácil.
— Cara, Von, lembra daquilo que o Seh nos ensinou?
Von arregalou os olhos e estalou os dedos, saindo da preocupação e sorrindo.
— Lembro! É engraçado, ele faz de uma forma que o Merriam sequer teria pensado... Não tem hora melhor pra testar!
Ele começou a trabalhar, e Art percebeu a influência de Seh. Era quase uma assinatura, algo que envolvia todos os seus métodos, um tipo de personalidade, um sabor único. Como quando um cheiro nos traz de volta a uma lembrança emocional: repentino, difícil de explicar, e inquestionável.
Von falou:
— Onze.
Trevor arregalou os olhos, e logo pôs-se a repetir o feito. Von não teve reação, talvez cansado ao fazer algo que não colocava na mente há mais de um ano, talvez impressionado com a resposta.
— Onze — Trevor repetiu, a expressão de incredulidade só se atenuando.
— O que foi? — disse Art, primeira vez em meses totalmente perdido. — Onze o que?
— Onze pessoas na cidade — responderam os dois.
— Como assim? — disse Art, cético. — Eu vi...
— Você viu mesmo? Dá uma olhada boa.
Art bufou, revirando os olhos, mas olhou de novo. Achou a pessoa mais próxima, e a viu de frente, como se estivesse a um palmo de seu rosto. Era um homem de meia idade caminhando na rua, olhos meio mortos, passos sem firmeza, sem equilíbrio. Bêbado.
Muito pouco para se provar certo; Art pulou para outro, também caminhando. Uma moça nova, que andava com uma expressão de exaustão ausente, os olhos distantes, a boca semiaberta... Sábado de noite, o percentual de bêbados na rua era realmente alto. Art foi olhar mais um, só para ter certeza. Um casal deitado na cama. A televisão estava ligada, mas eles não olhavam. Tinham os olhos abertos e perdidos, focados no teto. Se não piscassem, Art diria que estavam mortos. Ele tentou entrar na mente deles, e não conseguiu.
A mente deles não estava lá.
— Caralho, que porra é essa? — disse Art, ainda com os olhos longe dali. — Onde...?
— Olha mais pra baixo — disse Von.
Art desceu a percepção e sentiu um mínimo sinal de vida. Debaixo da terra, bem fundo. Cavou com os olhos, um, dois, dez metros, cem, quinhentos, mil, cinco mil, e achou... Um lençol freático? Uma caverna? Estava cheia de...
Ele nunca tinha visto daquela forma. O método que Merriam os ensinara para sentir pessoas, que ele ainda usava, sentia a mente trabalhando, não as funções fisiológicas do cérebro, mas os pensamentos, a... Consciência, talvez? Art ainda não tinha revisto sua crença sobre a existência de uma alma, algo além do físico que os humanos possuíam, da mesma forma que não tinha repensado seu ateísmo. Acreditando nisso ou não, na cavidade de pedra Art sentiu as almas da cidade inteira. Não tinha outra palavra para descrever o que sentia. Essências? Mentes?
No buraco da terra Art via tudo que fazia das pessoas pessoas. Via seus pensamentos, manipulados para não ficarem tão confusos, via... Via a fé de todos eles. Doze quilômetros abaixo.
— Eu nunca imaginei... — Ele disse, uma lágrima escorrendo dos olhos vidrados. — Que solução elegante, sem deslocamento de matéria, mas ainda tirando a parte que realmente importa, a parte que nos atrapalha...
Ele voltou à biblioteca, os olhos doendo mas não tanto quanto deveriam. Von tinha as pupilas brancas, e a boca escancarada. Trevor olhava para os dois, sem entender, mas acreditando nas expressões deles.
— Tiraram todo mundo daqui — disse Von. — Não mataram todo mundo, mas...
— Tiraram a fé da cidade — disse Art, limpando as lágrimas e tentando conter a excitação. — Pra maior parte das pessoas, vai ser uma noite qualquer.
— Mas pra nós... — sussurrou Von.
— Vocês tão sentindo isso? — Trevor olhava para os lados, segurando uma das cadeiras como se precisasse se equilibrar para ficar em pé.
— Pra nós eu prevejo uma noite memorável — disse Art.
Von piscou e voltou à biblioteca, cambaleando, sem equilíbrio. A mesa deslizou, batendo na parede, e as estantes se inclinaram. Ele agarrou os punhos dos dois logo antes dos livros choverem sobre eles.
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E este foi o capítulo 6! A coisa está começando a esquentar! O que será que vai acontecer na cidade? Será que Rocan estava exagerando ou não? Será que há uma chance real da Presença explodir a cidade? Algumas destas respostas no capítulo 7, Art e a Universidade! Mas, antes dele, um interlúdio curto: O Apartamento de Henderson. Já que você achou a história que o Art contou pra Alesia, de como ficou com a Consequência no braço, mal contada, não achou?
Como sempre, obrigado pela leitura! Se você curtiu, deixe um comentário, ou fale comigo pelas minhas redes sociais! Tá tudo no meu site, http://oucoisaparecida.com.br/, dá uma olhada lá!
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Princípios do Nada
Mystery / ThrillerE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...