O diário deslizou pelos dedos de Von e caiu no chão. Quem olhasse para ele veria uma expressão de perfeita calma, placidez profissional. Aquela que pode ser autêntica ou resultado de um choque tão intenso que a face é incapaz de exprimir.
Os primeiros livros secretos de Art eram o que Von esperava: coisas sobre ele, sobre Lena e os outros do grupo, sobre Seh, sobre Cella, sobre Alesia... Mas aquele último volume, o diário, era diferente. Continha pensamentos pessoais sobre os Picos e tudo que acontecera com eles, do dia em que chegaram até o dia em que saíram com o avião.
Tudo que morrera em Von nos últimos anos voltava à vida. Fechou os olhos, expandindo sua consciência. Art estava certo em suas notas. Claro que estava certo! Como ele não notou antes?
Não, não era possível! Art era seu amigo! Nunca faria isso!
O diário podia mentir. Von precisava ver por si mesmo. Mergulhou no espaço e desapareceu.
A primeira coisa que notou foi a luz. Não era o azulado claro e calmo dos Picos, mas um vermelho escuro, apagado. Havia grandes torres metálicas à sua volta, até onde a vista alcançava, e ele não via o chão. Quando olhou para baixo viu que as torres se mesclavam com o escuro abaixo. Vermelho em cima, escuro em baixo. Vermelho e negro.
Um ruído permeava o espaço, borrado, parecendo às vezes música, às vezes conversa. Vago demais, longe demais...
Não havia chão. Caiu.
Podia voar. Voou.
Sentiu alguém. Era uma sensação tão estranha, nova... Não sentia aquilo há anos. Encheu os pulmões, e fez as torres vibrarem.
— ART!
Seu grito ecoou, parecendo distorcer até a luz, tremendo toda a realidade. Art surgiu instantaneamente.
Estava irreconhecível: esquelético, olhos afundados na face, pálido... O cabelo caía até a cintura, mas não tinha barba. Usava roupas simplíssimas, um último estágio antes de admitir que não precisava delas. Pela sua expressão, também mal reconhecia Von: a barba e a nudez faziam dele quase outra pessoa.
— Von! — Art sorriu com tanta vontade que Von quase acreditou. — Von, você apareceu! Eu...
— Eu achei o diário.
A expressão de Art se fechou tão violentamente que Von ergueu suas defesas, prevendo um ataque direto. Ele não soube dizer se houve ou não tal investida: a luz fazia sua cabeça tremer.
— Você não destruiu a fortaleza, destruiu?
— Eu não consegui — admitiu Von. — É isso mesmo? O seu diário tava certo?
— É claro que tava. Olhe à sua volta: isso se parece, por acaso, com alguma realidade? Estamos dentro de nós, cara. Das nossas cabeças. Em algum ponto do nosso subconsciente. Aparecemos nos Picos, e eu descobri este outro lugar. Por isso conseguimos dobrar a realidade tão fácil, moldar as coisas... Aprendemos a criar matéria! — disse Art, sorrindo. Quem era aquele?
— Você fingiu que tinha morrido.
— Você leu o meu diário. Pra que perguntar?
O diário explicava tudo. Na fita cassete que Von encontrou havia um programa de televisão explicando detalhadamente como se fazia uma câmera... Tão detalhadamente que, depois de revê-lo, Art conseguiria facilmente ter feito uma. E, com esse precedente, a fé de Von seria forte o suficiente para fazer um avião.
Art descobrira aquele lugar semanas antes de "morrer". Mas, diferente dos Picos, era totalmente vazio: só o vermelho acima e o negro abaixo. Se quisesse transformá-lo em algo útil, precisava de matéria, que não conseguiu simplesmente levar até ali. Precisava aprender a criar matéria.
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Princípios do Nada
Mistero / ThrillerE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...