Capítulo 3: Os Picos (XVIII)

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Realidade e sonho misturavam-se na mente de Von. A pequena parte dele que compreendia se sentiu mole, como se tivesse passado meses no espaço e fosse submetido mais uma vez à gravidade. Havia dor, mas era distante, quase como se fosse em outra pessoa. Havia sofrimento, no passado inacessível que era a realidade.

O infindável escuro existiu só por tempo o suficiente para deixar sua marca. Um grão de segundo; um século. Mas depois dele a mente de Von vagueou para lugares mais tranquilos, e deixou-se relaxar.

O vento noturno penetrou no quarto, enrugando as cortinas, produzindo um som leve e agradável de arrastar do tecido. Fios de luz azulada cruzaram o cômodo, pairando no ar e roçando no rosto inexpressivo de Von. Não foi isso, entretanto, que o fez saltar da cama: foi a lembrança inconsciente que seu quarto não tinha cortinas.

Von arregalou os olhos e tateou o corpo. Estava em um cômodo de madeira simples, numa cama mal arrumada. Fazia silêncio, era noite. Encontrou todos os pedaços do corpo no lugar. Era um quarto da casa do lago.

Não sabia dizer onde, mas doía. Talvez todo o seu corpo: uma dor que permeava músculo pele e osso, talvez a dor de membros imaginários decepados. Pensou que talvez tivesse mercúrio no lugar do sangue, como fez em Art, mas se conseguia se mover era improvável. Apesar disso, alguma parte do seu crânio tinha que ter sido transformada em chumbo, para justificar aquele peso.

Estava sozinho no cômodo, o que era incomum: aquele quarto tinha dois colchões, um deles sempre reservado para Art. Os pais de Von não usavam muito aquela casa de veraneio, então ele mesmo que costumava lavar a roupa de cama. Por causa disso havia um cheiro residual nos lençóis, que o fez pensar em outono e em Alesia.

A porta se abriu num estalo, e Art entrou. Von fechou os punhos. Se o amigo não tivesse erguido as duas mãos, olhos arregalados e assustados, a história teria sido diferente.

— Calma, Von. Fica de boa — disse Art, e Von hesitou.

Art estava diferente. Diferente do que foi nos Picos, e, depois, do que foi no vermelho e negro. Era o Art de antes: alto, tranquilo, meio desajeitado. Von o conhecia bem o suficiente para não se enganar com aparências, mas com os anos aprendeu a ler a aura do amigo. Não trazia raiva ou violência com ele.

Art caminhou na direção da cama e se sentou. Von recuou e apoiou as costas na parede, as pernas ainda cobertas.

— O que aconteceu?

— Você apagou. — Art hesitou. — Não sei direito por quê. Você apagou forte, talvez por algum cansaço mental.

— Quanto tempo?

— Umas doze horas.

— Lena! — lembrou-se Von. — E ela? Como ela... — A última memória que tinha era a garota caída e inconsciente, depois que eles transformaram a mente dela em seu playground pessoal. Depois de construir e moldar, destruir e refazer, será que ela...

— Ela tá dormindo. Mas não se preocupa, ela tinha acordado, conversei com ela. Está bem. Acho que, pra ela, passou tipo só um segundo. Ainda estamos naquele mesmo final de semana.

Von não se moveu. Art continuou:

— A Lena tá normal. Eu procurei dentro dela... Sem conseguir entrar, só sentindo as áreas... Achei os Picos, senti aquela área difícil dos prédios em construção... Foi mais difícil, mas até achei o vermelho e negro. Não tinha nada errado. Ela tá bem.

Os dois ficaram quietos. Von ficou feliz em ver que Art expressou alguma preocupação com Lena. Pelo menos na superfície, aquele era o Art que ele conhecia, não o estranho que quase o matara.

— Art... — começou Von, coçando o olho com a palma da mão. — O que aconteceu? Lá, com a gente?

— Não tenho ideia. Acho que fomos influenciados pelo ambiente de alguma forma. Ah, cara. Von, eu...

E a fala morreu. Von compreendeu que aquilo era o mais próximo de desculpas que ganharia. Mas, por outro lado, era o mais próximo de desculpas que daria, também. Nenhum dos dois, por mais competitivos que fossem, era de da colocar a culpa no outro. Tinham feito besteira, cada um a seu nível. Von tinha uma noção de que qualquer um que ouvisse a história (e, pensando em contá-la, só veio uma ouvinte à mente) colocaria toda a culpa em Art, na mentira, na manipulação. Mas ele não conseguia ignorar as próprias falhas. Pensava em mil maneiras de ter feito tudo de uma forma mais limpa.

Von fechou os olhos e sentiu Lena, no quarto do lado. Era mais fácil fazê-lo com só os três dentro da casa, embora ele quisesse ter Alesia ali para atrapalhá-lo. Se ela estivesse com eles certamente teria mudado as coisas, teria... Feito o que? Entrado na mente de Lena com os dois? Brigado com eles?

Art se levantou.

— O dia de hoje foi um erro. Eu não sei o que fizemos, nem como fizemos, mas sei que foi real. Quem sabe a Alesia estivesse certa. Até mais.

A mente de Von acompanhou Art até o ponto de ônibus. Antes, mal conseguiam se comunicar a mais de dez metros de distância. Foi real. Von ergueu a palma da mão, encarando-a sem piscar. Sentiu o ar, átomo por átomo. Não vou conseguir fazer aqui, vou? Estamos no mundo real. Mas mesmo assim tentou.

Um grão de areia surgiu em sua mão. Ele arregalou os olhos, assustado, recuando na cama e perdendo o grão de vista. A cabeça doía. Não conseguiu mais dormir.

O dia seguinte foi difícil. Mal conseguiu olhar Lena nos olhos, mas felizmente ela estava preocupada demais com os acontecimentos da véspera para realmente notar. Ela perguntou pouco, e Von respondeu menos ainda.

— Lena — ele tentou, várias vezes naquele dia. Em todas, a garganta travou. Tinha que falar com ela, mas não conseguia. E, mais uma vez, na mesma cozinha, Von engoliu as palavras que tinha.


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