Trevor foi o terceiro a chegar na biblioteca. Art e Von sentavam-se à mesa do grupo de estudos como se estivessem ali há algum tempo, esperando. Podiam muito bem estar competindo para ver quem tinha mais olheiras. Trevor sentiu que dormira mais que os dois juntos.
— Bom dia — disse, colocando o material na mesa com um estalido. Os dois reagiram àquilo com grunhidos baixos, sem mover muito os olhos. Trevor sentiu-se desconfortável, e murmurou alguma coisa sobre ter esquecido a calculadora enquanto se retirava.
Art piscou algumas vezes, forçando-se a despertar, e ajeitou a postura. Coçou o queixo com a mão, e Von percebeu que o colega estava inquieto, como quando queria dizer algo mas ainda pensava se valia a pena. Surpreendeu-se quando ele realmente falou:
— Alguém me procurou ontem.
— Ah é? — respondeu Von, sem interesse.
— É. Enquanto eu dormia.
Von coçou os olhos com as palmas das mãos, o cabelo acima terrivelmente desarrumado, e perguntou-se por que diabos o colega compartilhava aquela informação inútil. Levou alguns segundos para compreender.
— O que!? Enquanto... dormia?
— É. Nos meus sonhos.
— Como você soube?
— Eu percebi durante o sonho. Acordei na mesma hora. Não era alguém perigoso.
— Isso é possível? Que coisa insana...
— Fiquei a manhã entendendo o que aconteceu, e desenvolvi uma defesa que deve funcionar. Mas nem vou precisar. Não vou mais dormir.
— Fico surpreso que você ainda dormia.
— Ainda tem as suas vantagens, infelizmente. Eu sei o que você pensa sobre isso.
Von concordou, os olhos bem abertos e frios. Art parecia pensar pouco sobre a invasão, o que Von encarou como arrogância do amigo, mas algo o perturbou: quem teria feito isso? Seria possível invadir os sonhos de alguém sem conhecê-lo, só de vista? Ou nem de vista, só por alguma sensação, algum sabe-se lá o quê? Abriu a boca para perguntar, mas Trevor voltou à mesa, acompanhado de Cella e Clara. Quando terminaram de sentar Tom apareceu entre as estantes, estranhamente descansado. Art e Von trocaram olhares de dúvida, mas havia coisas mais importantes em jogo.
— Onde tá a Alesia? — disse Clara, a voz fina causando dor física a Von.
— Ela não foi em nenhuma das aulas da manhã, e nem almoçou com a gente... — disse Cella.
— Sério? Puta, será... — começou Von, fazendo menção a se levantar. Art pareceu compartilhar sua aflição, ambos completamente alheios àquela possibilidade. Primeiro Seh e Henderson, e agora...
— Tô aqui, relaxem — disse Alesia, surgindo entre as prateleiras, bocejando.
— Alesia! Você não foi na aula... — Cella sorria, aliviada.
— É, eu não achei que valia a pena. — Ela se sentou, espreguiçando-se. — Desculpa se preocupei vocês.
— Bom — disse Von —, agora que tá todo mundo aqui posso começar.
— Todo mundo? — disse Clara. — E o Seh e o Henderson? Será que eles não vêm? Vocês não iam procurar eles ontem?
— Não encontramos — disse Art.
— Sim — continuou Clara —, mas isso não quer dizer muito. Vai que eles só estavam fora de casa, sei lá. Quem sabe eles ainda apareçam.
— Quem sabe, mas acho improvável. Vamos...
— Vamos estudar um pouco, esperar uma meia hora, sei lá — interrompeu Trevor, indiferente ao olhar fuzilante de Von. — O que vocês acham? A gente se reúne aqui para estudar, afinal.
— O... o que?! Vocês... — Von afinou a voz, como fazia quando incrédulo. — Como...
— Von. Por favor, meia hora — disse Alesia.
Alesia não falava com ele desde a cozinha. Desde o primeiro incidente no lago. Não trocou um olhar, uma palavra.
Von ficou quieto.
A mesa mergulhou no silêncio. Trevor foi buscar alguns exemplares do livro, e logo eles estavam todos curvados sobre as páginas amareladas.
Von batia o pé no chão. Passaram cinco minutos em silêncio, então alguém perguntou algo sobre tal exercício. Trevor tentou explicar, mas perdeu-se em sua própria explicação, percebendo um erro. Art levantou um ponto interessante, mas falava sem dar muita atenção.
Seh sempre respondia essas coisas. Fazia tempo que Von não dava mais bola pro desempenho acadêmico que ninguém, mas será que as notas de Seh não eram as maiores entre eles? Será segurava o jogo na faculdade, como segurava com o resto? Seh...
Von olhava o relógio no pulso de Trevor toda vez que alguém virava uma página. A cada som de passo, distante, imaginava Seh e Henderson aparecendo, desculpando-se pelo atraso e explicando como tinham feito qualquer coisa na véspera, e por isso não apareceram. Todos ririam, e o Livro teria sumido quando fossem procurá-lo.
Nem a pau que isso vai acontecer. Os dois já não estavam mais com eles; talvez estivessem até fora da cidade. O que estariam fazendo? Resolvendo o problema? Fugindo do perigo? E Seh lhe avisou. Disse para não fazer nada apressado.
Von batucava na capa dura do caderno tão rápido que mal se ouvia. Lia e relia os mesmos parágrafos, interrompido pelos próprios pensamentos, pelas memórias dos Picos, pelas teorias sobre o Livro, sobre o que o sumiço de Seh podia significar, sobre a caverna no quintal, sobre Merriam, sobre Art, sobre Alesia finalmente falando com ele, sobre o que Siman lhe dissera, sobre...
— Ei, vocês...
— AH! — Von levantou-se, tão brusco que Clara quase caiu. — Não, eles não vão chegar! Eu não posso ficar aqui estudando agora!
Todos ficaram em silêncio, encarando Von. Ele suava.
— Eis a parada: todo mundo aqui sentiu quando o Livro saiu do embrulho. Mesmo vocês... — Passou os olhos por Cella, Clara, Trevor e Tom. — Percebem que é uma coisa bizarra. Perigosa. Poderosa. Temos que dar um jeito nisso.
— Por que nós não destruímos ele? — disse Clara, tímida. Von a olhou como se estivesse vendo uma cadeira falar. Arregalou os olhos, mas depois coçou-os, pensando.
— Essa é uma péssima ideia — disse, observando Art. Ele não fez menção a concordar ou discordar.
— Por ora... — disse Tom. — O Livro fará alguma coisa?
— Não sei — disse Von, olhando para Art.
— Nem eu. Mas ninguém vai achar.
— Certo — disse Tom, apoiando o queixo nos dedos entrelaçados, encarando o centro da mesa.
— O que é isso? — disse Trevor, meio rindo. — Vocês entendem alguma coisa do que tá acontecendo?
— Alguém vai vir procurar ele — disse Von, ignorando completamente o amigo.
— Se alguém aparecer na universidade procurando por alguma coisa, eu vou saber. — Tom se levantou. — Ajudarei com o que puder. O assunto é importante. Eu falo com vocês.
Todos ficaram em silêncio enquanto ele saía.
— Escuta, e a gente? — disse Cella. — Estamos nessa juntos, não? Podemos ajudar!
— Não, não podem. Vocês não podem fazer nada. — disse Von. Cella recuou na cadeira, tentando sem sucesso segurar a expressão magoada. — Só não fala disso pra ninguém.
Von saiu da sala antes que qualquer um pudesse protestar. Caminhou muito, a esmo, até perceber que, ao mesmo tempo que não tinha como ficar parado, não sabia para onde ir.
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Obrigado pela leitura! Fique ligado, novas cenas serão publicadas todas as segundas, quartas e sextas-feiras. E se você ficou impaciente e quer ler mais, dá uma olhada aqui: http://bit.ly/principiosdonada
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Princípios do Nada
Mystery / ThrillerE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...