As botas de Alesia escorregaram na borda da cratera, deslocando algumas pedras e fazendo-as cair no buraco negro abaixo. As duas não olhavam para baixo há um bom tempo; a visão acima prendia toda a atenção delas.
Quando passaram pela neblina e olharam para cima pela primeira vez, não compreenderam. Acharam que o que viam era uma enorme lagoa suspensa, sua superfície espelhada mostrando a universidade abaixo, mas isso não explicava o monte de terra em cima, nem as coisas caindo.
Acima da cidade a universidade pairava, como uma nuvem urbana opressora, destituindo o céu de inverno de sua beleza solitária.
As duas estavam caminhando há uma boa hora. Alesia pedira para Cella procurar Lena e ela seguiu seu rastro, mesmo quando a amiga pareceu se distanciar rápido demais para estar à pé. Com tão pouca gente de verdade na cidade Marcella captava facilmente o "gosto" (era a melhor palavra que tinha) das pessoas. Sabia que sentia Lena, sem sombra de dúvidas, apesar do que se passava pela cabeça da amiga. Um medo empolgado, cheio de adrenalina, um senso de grandeza e ego... Sentia muito isso em Art e Von, mas nunca em Lena. Pensou em mencionar isso para Alie meia dúzia de vezes, mas...
Cella se sentia estranha. Tinha a cabeça leve demais, e sempre que parava para pensar na situação Alesia agarrava sua mão e ela era invadida por uma calma poderosa, afogando suas preocupações. Via as pessoas passando por elas, homens e mulheres com olhares vagos e cansados, cambaleando como marionetes mal controladas. Via todos, mas não sentia ninguém. Se não sentisse tão bem a raiva de Alesia, podia achar que seu talento tinha mais uma vez desaparecido. Desde que a onda caiu, só sentiu Alesia, Lena e Clara. E Clara...
— O que tá acontecendo? Pra onde vocês vão? — perguntara a garota, enquanto Alesia colocava suas botas e fechava o casaco.
— Precisamos sair. Ah, como é bom estar no controle de novo. — Alesia bufava a cada fala, tomada pela fúria. — Cella, você disse que viu a Lena saindo? Você consegue achar ela?
— Eu sei onde ela está. Os meus pais...
— Eu vou com vocês — disse Clara.
Alesia assumira uma postura triste, os lábios semicerrados sussurrando as próximas palavras.
— Não. Não vai.
Clara caíra no chão, e antes que Cella conseguisse ir ajudá-la aquela calma a preencheu, e a voz de Alesia a guiou para fora. Sentia-se embriagada.
A cratera antes preenchida pelo campus era um breu absoluto. Os objetos — livros, pedras, folhas, cadeiras, armários, ossos(?), vultos (por favor não sejam corpos) — caíam e eram engolidos pelo escuro, que parecia sugar até o som. Quando Cella olhava para cima sentia uma inquietação, um pensamento bobo mas crível de que havia algo muito errado com aquela cena, que ela não conseguia entender bem o que era... Toda a vez que chegava perto de descobrir, a mão de Alesia ia ao seu ombro, e Cella sentia a amiga ficar triste mas conformada. E então esquecia suas dúvidas.
— Isso aí é muito pesado — disse Alesia, como vinha fazendo desde o começo da caminhada. Falava mais sozinha do que com Cella, que de qualquer forma respondia:
— O que?
— Levantar a universidade. Quem tá fazendo isso deve ser a mesma pessoa que fez o negócio da onda. É alguém procurando o Livro... Talvez um dos caras que eu vi na praça de alimentação, ou quem quer que tenha ido até o bosque... Eu nem sei mais quem tá na jogada. Eu saberia, se não fosse a Lena... "Você vai me odiar por isso." — Alesia afinou a voz, chegando perto do tom de Lena. — Ah, eu vou mesmo. Acho que a primeira coisa que vou fazer quando a gente se encontrar é dar um soco na cara dela.
Cella sentiu quão verdadeiras eram aquelas palavras. Tinha que tentar acalmar Alie, mas quando a amiga falava era impossível levantar a voz. Quando tocava nela, mal conseguia pensar.
Caminharam mais um pouco e Alesia parou. Havia um muro de árvores na frente delas, de forma que precisariam ou dar uma volta ou cair na cratera para continuar.
— Ah — disse Cella, juntando as mãos à frente do corpo e inclinando-se para trás, olhando para cima. Olhando para a universidade. — A Lena tá lá.
— Lá em cima? — Alie arregalou os olhos.
— É.
— Como ela foi parar lá? Que saco! Espera, o... o Von tá com ela?
— Hã... Não. — Ela franziu o cenho. — Não consigo achar o Von.
— E o Art?
Alesia já olhava para a cratera, imaginando se seria fácil descer por ela, sem muita esperança de que Cella encontrasse Art. Como Lena subira até a universidade? Estava procurando o Livro, será? Se ele estivesse lá já não teria caído? Lena podia estar se metendo com quem quer que estivesse levitando os prédios... Não, impossível, ela nunca faria algo tão direto, principalmente sozinha. Mas, ao mesmo tempo... Estava aprontando alguma.
— O Art tá ali — disse Cella.
— Hã?
Cella apontava para um morro distante, numa das bordas da cidade.
Alesia coçou a cabeça, confusa, mas deu uma chance à amiga. Fechou os olhos, e viu à sua frente. Depois mais à frente. Depois para cima, para o alto... Alie nunca fora boa em fazer aquilo à distância (em fazer qualquer coisa à distância), mas a ausência de pessoas facilitava muito. Fez os olhos voarem alto, na direção do morro, atravessando nuvens baixas, árvores, postes... Logo viu um grupo de pessoas subindo. Reconheceu o gordo e o alto de óculos do shopping, mas não os outros.
— Onde ele tá? — perguntou Alesia.
— Tá subindo, junto com várias pessoas... Estranhas.
Alesia continuou olhando, vendo os rostos das quatro pessoas que subiam... Nenhuma delas era Art. Viu os lábios se movendo, mas não conseguia ouvir a conversa. Não ao mesmo tempo que ainda ouvia Cella.
— Vou ficar meio ausente — disse Alesia, sentando-se. — Qualquer coisa me cutuca, ok?
Não esperou resposta. Deslocou os ouvidos, juntando a audição à visão, ouvindo as vozes. E nada de Art. Claro que não. Eu só vou ver ele quando eu quiser que eu veja, aquele desgraçado... Mas, se Art estava se arriscando tanto para ouvir aquela conversa, quem sabe valesse a pena ouvi-la também.
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Princípios do Nada
Misteri / ThrillerE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...