Capítulo 3: Os Picos (VIII)

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— Você tem certeza? — disse Von, no centro do pico mais amplo que encontraram. Viam alguns maiores na distância, mas ficaram receosos em se afastar tanto da caverna que tinham criado. Ainda era surreal a possibilidade de estarem sozinhos num raio tão grande, mas qual outra explicação tinham para a facilidade? Nada nem a fé de ninguém veio contestar Von enquanto ele saltava quarenta metros para chegar no topo daquele pico.

Art se lembrou que Merriam falou algo sobre certas localizações deixarem a prática mais fácil, mas nem ele nem Von conseguiram se lembrar muito bem. Art trabalhou na memória, em como recuperá-la, como rever o que já tinha visto, e em dois dias conseguiu mais do que conseguiria em um mês de neblina. Von, enquanto isso, manipulava pedra como se fosse massinha, moldando e reconstruindo o interior da caverna, construindo cômodos, móveis, e até lâmpadas, quando se lembrou de como funcionava uma. Trabalhando juntos, um recuperando memórias precisas daquelas aulas involuntárias que receberam pela tevê e o outro transformando pedra em aço e cobre, construíram um gerador a carvão para lhes dar eletricidade.

Na casa do lago, meras duas semanas antes, Art e Lena ficaram empolgadíssimos quando Von conseguiu transformar uma pedra do tamanho de uma moeda em ferro feio, oxidado.

Dois dias, e já tinham descoberto tanto. Mas era hora de voltar.

— É o jeito — disse Art. — Faz como eu te ensinei.

Art sentiu Von esforçando-se para rever as memórias, visualizar com precisão tudo que acontecera dois dias atrás. Árvore por árvore, galho por galho. O método era difícil: mesmo para Art, que criou aquilo, era custoso lembrar de tudo tão bem. Não acreditava que Von conseguiria fazer algo além de só se lembrar, e por isso impressionou-se quando a primeira árvore brotou do chão.

Alta, reta, poucos galhos, como todas aquelas que rodeavam o lago. O chão foi recuando enquanto Von transformava-o em mais árvores, colocadas milimetricamente na posição que deveriam, cada folha, cada chumaço de grama entre elas. Art imediatamente viu-se de volta na cena. O pico não era grande o suficiente: se um dos dois olhasse para trás veriam um horizonte estranho, mas com sorte ignorariam isso.

— Pronto — disse Von, arfando. — Acho que isso são duas coisas. Um, estamos no mesmo lugar, e dois, tô cansado que nem antes, quando te enterrei no chão.

— Ótimo. Agora, a parte mais difícil... O estado mental.

— E se não der certo? — disse Von. — Quero dizer, se a gente não tivesse sido interrompido, eu teria te matado.

— Relaxa. Vou colocar um mecanismo, se qualquer um de nós chegar perto da morte a coisa para e voltamos com a cabeça de agora. E, para todos os efeitos, eu teria te matado antes.

— Claro — disse Von, rindo. — Repete isso daqui a cinco minutos, no lago.

Por mais que tivessem avançado naqueles dois dias, nenhum deles sequer chegou perto do teleporte. Mal sabiam como começar. Art aprendeu a voltar a própria cabeça para outro lugar no tempo, e Von aprendeu a lançar pedras na velocidade do som (o estouro sônico foi tamanho que se esconderam dentro da caverna por horas, temendo alguém indo ver o que diabos fora aquilo). Tiveram que pensar numa alternativa.

— Ok. Vou começar. Tenta não resistir, assim fica mais fácil pra nós dois — disse Art, inspirando profundamente. Von concordou.

Art concentrou-se o máximo que conseguia, consciente da dificuldade do que estava prestes a tentar. Von sugerira que ele também mudasse os sentidos deles, fizesse eles verem árvores ilusórias, mas Art achou que ia além da sua capacidade. Era mais fácil fazer árvores de verdade e se concentrar só em mudar as memórias.

Deixou tudo pronto na própria mente, revendo pela milésima vez todas as condições anteriores ao embate deles, os últimos momentos que tiveram no lago, e passou para Von. Manipular uma mente tão aberta era algo novo: Von não só o deixava entrar como ajudava, guiava-o entre as diversas e por vezes incompreensíveis estruturas mentais. Ele sentiu as memórias da tarde no lago, a raiva, a tristeza, a arrogância... Viu pedaços do que Von sentira na penúltima neblina, quando ele e Alesia...

Podia dar só uma olhada. Von nunca perceberia. Já estivera tentado a fazê-lo tantas vezes, mas só agora teria abertura total. Um segundo, e saberia tanto do que já passou pela mente do amigo. Von poderia ter deixado acesso restrito a memórias mais distantes, mas não fez isso. Fez tudo para deixar o trabalho de Art o mais fácil possível. Art sentiu vergonha de si. Terminou seu trabalho, e logo todos esses pensamentos evaporaram.

— Que isso sirva de lição — disse Von, arfando. — Fica aí até esfriar a cabeça, mané.

Von virou-se na direção de Lena, pretendendo tirá-la dali e deixar Art preso por algum tempo, mas não a encontrou. Ouviu algo atrás dele, e reagiu tarde demais.

Art estava de pé, sem sinal de terra nas mãos; foi tudo que Von conseguiu ver antes de sentir o martelo no cérebro. Um jorro de sangue saiu do seu nariz, encharcando a camiseta, e Von caiu no chão.

— CARAS! — gritou Lena, sua voz vinda de algum lugar.

Os picos presenciavam o embate dos dois. Uma reprodução idêntica. Se da primeira vez foram parar nos Picos, quem sabe na segunda voltassem ao lago.

— SE TIVESSE NEBLINA — começou Art, falando com dificuldade por causa do estrangulamento. — ISSO NÃO TERIA ACONTECIDO!

Os dois não olharam para fora, onde não havia o lago; olhavam um para o outro.

— PAREM! — gritou a voz de Lena, dentro dos dois.

Não pararam. A face de Art já era totalmente roxa, os olhos vermelhos cheios de ira e poder, encarando um Von ajoelhado, fazendo do vento seu servo.

Art sentiu os ossos estalarem, alguns saltarem para fora, o vento empurrando-os com a força de várias atmosferas. Von sentiu a mente estraçalhando-se, o tato desaparecendo, o controle dos membros sumindo.

Um fio de vida sobrava nos dois no momento que algo estalou.


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