As batidas na porta trouxeram Art de volta ao mundo.
— O quê? Já vou — disse o jovem, segurando um gemido de dor ao levantar-se da cama e ir até a porta. Luz escapava pelas venezianas, e o hotel estava cheio de som.
— Bom dia — ele grunhiu, abrindo a porta pela metade, semicerrando os olhos por causa da luz do corredor.
— Oi, eu vim avisar que hoje já é dia... — A camareira era jovem, certamente com menos de trinta. Art viu seus olhos azuis descendo, arregalando-se ao perceber que ele estava nu. Art fechou um pouco mais a porta, escondendo-se parcialmente atrás dela, mas o rubor da mulher não sumiria tão depressa. Ela quase fechou os olhos; talvez não notasse o rubor do próprio Art.
— O que foi? — ele perguntou, tentando soar natural.
— É que... Você tinha dito na portaria que ia ficar até hoje, e a hora de sair foi meia hora atrás...
— Mas eu... — Ele tinha dito que ia ficar duas semanas. Passara só uma na capital. A não ser que... — Eu dormi demais — ele disse, arregalando os olhos. A moça parecia prestes a explodir de desconforto, mas ficou estática enquanto ele ponderava. — Claro, desculpa. Desço daqui a pouco.
A camareira baixou os olhos, mas no meio do caminho levantou-os de novo, percebendo o que encontraria, e depois se virou, caminhando dura como um robô. Uma das camareiras mais velhas estava no corredor, expressão de desgosto.
— Jovens — ela disse, subitamente calada pelo fechar da porta.
Art saltou na cama, e o corpo gritou. Sentia-se mole, dolorido, entorpecido. "As coisas têm um custo, isso é o que todos acreditam. E, se você acredita, real ou não, assim será", dissera Merriam, mas o jovem estava farto dele e de sua falta de visão. Se fosse tão sábio assim não teria desaparecido. Art se levantou num pulo, e expulsou as dores do corpo de uma vez. Sentiu os músculos rígidos e novamente vigorosos, e tirou aquele torpor de si com rapidez. Lembrou-se do que fazia dele, no mínimo, um adepto. Uma pitada de ar se desfez, e ele foi preenchido de energia. Sentiu uma ponta da Consequência, mas a ela nem deu chance.
— Nunca mais — ele disse, irado, entrando no chuveiro. — De hoje em diante, EU escolho o quanto eu durmo.
Meia hora depois estava fora do hotel, nenhum dinheiro na carteira mas um tanque cheio, o suficiente para levá-lo de volta pra casa.
Ainda estava assustado com a ideia de que alguém o notara (e quem será que era aquele cara no topo do prédio?), mas, se ninguém o encontrou na semana que esteve apagado, talvez ele estivesse seguro. Ainda assim, queria sair da capital o mais rápido possível.
Mas antes precisava passar nas bibliotecas. Na semana anterior viu todas de longe, decorou seus endereços e anotou mentalmente quais eram as maiores e mais antigas. Estava com pressa, então começou já na mais promissora: a maior, mais velha e mais feia biblioteca de todo o país. Era um prédio antigo, com traços vitorianos, outrora grande e belo e agora descascando. Não havia muito movimento pela manhã, então logo estacionou o carro no parque próximo e caminhou até lá. As árvores abriam caminho para a construção, sua larga entrada, os pilares antigos e a enorme escadaria. Parecia um banco ou casa de algum imperador. Mas o teto era torto, desgostoso ao olhar, e o aspecto geral da construção... por algum motivo era feio. Não havia como definir melhor que isso, arranjar muitos motivos lógicos. Ele sentia uma compulsão estranha pelo lugar. Atravessou as amplas portas de três metros de altura e passou pela cancela, aberta a qualquer um.
Se por fora o prédio era feio, por dentro era magnífico. As paredes eram todas recheadas de livros, entulhados até o ponto de parecerem prestes a explodir e voar para todos os cantos, formando uma avalanche inescapável de conhecimento e morte. Art cruzou o pátio central, cheio de mesas, e viu os três andares abrindo-se para cima, todos habitados por estantes altas e parrudas, lotadas até o último centímetro. A madeira era bem talhada, cheia dos detalhes do século passado, e todas as superfícies não escondidas por livros tinham quadros ou luminárias. A luz vinha dos cantos, sempre indireta, dando um ar de descanso e concentração ao lugar.
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Princípios do Nada
Misterio / SuspensoE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...