Pedra era difícil de fazer. Coisas mais ordenadas, como aço ou diamante, eram mais simples. No estacionamento do prédio de Art, Von aprendeu quão difícil era criar matéria com a fé da cidade nas costas. Ali, no lago, percebeu quão difícil era criar a partir de ideias, e não de memórias. Ficou horas naquilo, criando cada átomo, tecendo cada estrutura cristalina, imaginando como seria a distribuição dos óxidos... Fez um rubi, grande como um punho, e o cobriu de pedra escura. Fez uma pérola, misturada com ônix, e cobriu de pedra clara. Colocou os dois blocos lado a lado, retos, para lembrar dos corpos que nem estariam lá.
Cavara as covas ele mesmo. Podia tê-lo feito com a mente em um segundo, mas não achou significado naquilo. Não era como se as covas fossem úteis, de qualquer forma; era só o ritual. Buscou uma pá em casa, e agora o mundo cheirava a terra.
Escolhera aquele lugar ao acaso, e demorou a entender onde estava. O lugar onde tudo começou: o ponto onde ele e Art entraram em Lena. Antes de Merriam o grupo esteve ali várias vezes, correndo bêbados, e até antes, brincando, na época que os pais de Von ainda os acompanhavam. Era um lugar quase tão recorrente nas memórias dele quanto a própria casa do lago. Quanto tempo fazia tudo aquilo? Três anos? Três décadas? Para Von, as duas respostas pareciam verdadeiras.
Os primeiros que apareceram foram Cella e Trevor. Marcella estava magra. Nunca tinha visto a garota daquela forma a não ser quando ela era muito nova, uma menininha-palito sorrindo seu sorriso doce e desdentado. Agora não parecia capaz de sorrir. Parecia cega. Não fosse Trevor ali, segurando-a firme pelo ombro, talvez caísse.
Trevor estava melhor do que Von esperava. Havia algo de Tom nele, uma seriedade quase raivosa mas contida, crescida, madura. Estava lidando com a situação. Melhor do que Von, provavelmente. Mas, fundo nos olhos, havia uma tristeza dessas que você aprende a conviver. Dessas que nunca realmente somem.
Tom veio logo depois. De quem Von esperava que aparecesse, só faltava Art. "Isso tudo é demais pra mim", dissera Clara, antes de ir embora.
Eles encaravam as covas, as lápides, em silêncio. Ninguém sabia como começar. O que começar. Só eles sabiam que as duas estavam mortas, então não haveria um enterro formal. Helena e Alesia não eram religiosas, e nem tinham expressado ideias concretas do que queriam em seus funerais.
— Eu gostava da Helena — começou Tom. — Ela entendia o silêncio. Ela era gentil. Eu nunca soube como ajudar ela, animar ela, mas ela sempre fez isso comigo.
Ele encarou um dos túmulos com uma seriedade mortal, os olhos arregalados sem nunca piscar. Respirava pesado. Chorava sem lágrimas.
— Vou sentir saudade.
Tom limpou os olhos secos e se voltou à outra lápide.
— E sobre a Alesia... Eu nunca entendi ela. Ela nunca me entendeu. Mas era uma garota divertida de se ter ao redor. Era muito cheia de paixão.
Tom tremia. Por um momento Von até achou que ele faria alguma coisa, criaria matéria, explodiria o mundo, mas no fim só suspirou.
— Enquanto nós vivermos, vocês estarão vivas. Em nossas memórias.
Ele foi o único que conseguiu falar. Marcella fechou os olhos e se encolheu, soluçando alto. Chorava como uma garotinha que descobria quão cruel e sem sentido a vida pode ser. Trevor encarou o chão, imóvel. Sua face parecia perder a vida, as emoções, a humanidade. Era uma casca do homem que fora. Mas continuava. Ergueu os olhos e avançou.
— Um dos poemas da Alesia, da época do ensino médio — ele disse, tirando uma folha amarelada de um dos bolsos. Trevor chegou a sorrir nesse momento, um sorriso triste e irônico, como se finalmente entendesse uma piada mórbida. — É bem ruim. Ela disse que queria ser enterrada com ele.
Trevor jogou a folha no túmulo e recuou. Os soluços de Cella preencheram o espaço por um bom tempo, até Von concluir que ninguém mais falaria. Pegou a pá e começou a tampar as covas.
A memória da formatura voltava à mente de Von, e não a parte boa. A conversa com Art. As luzes, vermelho acima, preto abaixo. As poucas vezes que vira Lena. Parecera decepcionada, apesar de estar com aquele carinha que ela namorou por um tempo.
Von nunca pensou seriamente em sair com Lena. Acusara Art de não ficar com Cella, mas o amigo pelo menos tentou, enquanto Von preferiu a solidão a não ter Alesia. Nunca deu uma chance a Helena. Não a teria como algum prêmio de consolação. Era injusto da parte dele? Ou simplesmente honesto?
Agora nunca saberia.
— Vou sair do curso de Física — disse Tom, logo que não havia mais terra para jogar nas covas. — Física não é a minha. Não sei como precisei que isso tudo acontecesse para perceber. Cuidem-se, pessoal. Não nos veremos mais tanto.
Caminhou para fora. Todos olharam para ele, que, surpreendentemente, se virou. Seus olhos eram pedra. Seu rosto era mármore. Encarou Trevor, Von, e até Cella, que parara de chorar. Olhos fixos e sérios. O olhar de Thomas. Significava mais que palavras.
E se foi.
— O mundo girou e me deixou aqui — disse Trevor, depois de um breve silêncio.
— O quê?
— Esquece. — Ele deu de ombros. — Vou sair do curso também, Von. Não faz mais sentido pra nós. Mas, ao mesmo tempo... Vou ficar na minha. Não tenho sonhos de grandeza. Já vi cadáveres demais.
Ele se abaixou, levantando Cella pelo ombro.
— Nos vemos, Von — disse Trevor.
Cella ergueu os olhos para Von, e o olhar trouxe arrepios. Cella sempre estava bem. Cella sempre ajudava todo mundo. O que seria do mundo sem ela? Von pensou em alegrá-la de alguma forma, quem sabe inserir felicidade na mente dela, quem sabe fazer uma flor... Mas isso tudo parecia tão vazio. Não precisou ser capaz de fazer essas coisas para ser amigo dela por tantos anos.
— A vida segue — disse Von, penteando o cabelo com a mão e tentando sorrir. — Se cuida, Cella.
Ela esboçou um sorriso, pífio comparado à radiância usual dela, mas ainda enorme naquele contexto. Ela acenou, concordando.
E os dois se foram.
Von se sentou no chão, encarando as lápides sem inscrição. Deveria escrever alguma coisa? Nem conseguiu falar. Talvez nunca conseguisse falar. As pessoas que tinha para conversar estavam todas mortas. Uma literalmente, outra em metáfora. Falando nessa outra...
— Para com isso, chega aqui — disse Von. — E nem é você, Seh, onde quer que você esteja. Tô falando com o Art mesmo.
Art saiu de trás de uma árvore, quieto, encarando as lápides. Como parecia fraco. Mas esse era o jogo do Art, não? Ele sempre parecia fraco. Sentado no estacionamento Von pensou muito no que foi a amizade deles. Mas ali, olhando diretamente para ele, a nostalgia se foi. Aquele era o Art agora. E, pelo resto de suas vidas, aquele seria o Art.
— O Seh sempre ficava falando sobre a tolice da juventude — disse Von. — Ele não chegava a reclamar, mas dizia que agíamos sem pensar, que éramos tolos, que fazíamos merda. Que estava no nosso cerne. Agora eu entendo. Ele já foi velho, e meio que via a besteira que tava fazendo, sabia que era besteira, mas por outro lado era jovem. Por outro lado não conseguia parar.
— Mas que besteira — disse Art. — Claro, ele tá certo. Nós fazemos merda, nós somos jovens e tontos e tudo o mais... Mas me diz, o que é isso senão viver? Os jovens tontos vivem uma vida mais audaciosa, mais arriscada, mais intensa, por causa dessa tolice. Dessa insensatez. Das ideias ruins que nascem as coisas memoráveis. A vida de verdade.
— E, na vida de verdade, as suas amigas morrem.
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É, a vida de verdade pode ser um saco de vez em quando. Obrigado por ler!
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Princípios do Nada
Mystery / ThrillerE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...