Capítulo 6: O Aviso de Rocan (VII)

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Lena quase saltou do sofá quando a televisão parou, brusca.

— Eu vou fazer mais pipoca — disse Cella, colocando o controle da televisão no sofá e dirigindo um sorriso amável a todas elas antes de ir até a cozinha do apartamento. Tomava cuidado ao caminhar, os pequenos e delicados pés aconchegando-se na madeira a cada passo, quase sem fazer som. Esse tipo de demonstração gratuita de graça costumava tirar o fôlego de Clara, deixando-a com uma inveja que ela tentava desesperadamente destruir, mas naquela noite aquilo a irritou.

Em pouquíssimas situações Clara se sentira tão deixada de lado na vida. Desde o dia que o Livro apareceu ninguém do grupo falava direito com ela, e todos pareciam extremamente tensos com a situação. Mesmo ali, vendo um filme e relaxando, ela sentia o desconforto de Alesia, sentada na poltrona atrás dela. A garota se mexia muito, insatisfeita em qualquer posição. Lena estava imersa demais no filme para notar, mas claro que Cella tinha notado. Não era do feitio da dona da casa parar o filme sem aviso.

— Vou ao banheiro — disse Alesia, convenientemente entrando no mesmo corredor que levava à cozinha. Seus passos pesados ecoaram pelo pequeno apartamento.

— Cuidado! — disse Clara. — Vai acordar os pais da Cella!

Alesia lançou-lhe um olhar primeiro raivoso, depois cansado, e se foi. Clara suspirou.

O grupo era assim, como Clara notara desde o início. Não eram muito bons em transparência. Por mais próximos que todos fossem, havia sempre uma trama, algum segredo que nunca alcançava os ouvidos de alguns. Ela entendia que muitas vezes isso acontecia para preservar a integridade do grupo, mas a falta de sinceridade a irritava. Alguns dias antes, quando Von pediu para que ela não se metesse nos assuntos do Livro, por mais grosso que ele tivesse sido, ela sentira um certo alívio. Pelo menos não teria que lidar com indiretas e exclusão sem explicação.

— E aí, você acha que o vizinho matou a mulher? — disse Lena, um pequeno e adorável sorriso espreitando no escuro. — Imagina só! Antes da Cella parar o filme eu tava quase explodindo...

— Não dá pra saber ainda... — disse Clara, desinteressada.

Clara entendia quando a deixavam de lado: era a mais nova no grupo. Não levava para o lado pessoal quando não davam tanta bola pra ela. Mas com Lena era diferente. Lena conhecia todos eles há anos! Seu jeito quieto e inseguro não deveria fazer o grupo esquecê-la tanto. Tinha certa pena dela.

— Vou no banheiro também — disse Clara.

Clara seguiu pelo corredor, usando as paredes como apoio para controlar os passos, e percebeu que deixara Lena sozinha sem dar a mínima. Sentiu-se ligeiramente mal por isso, mas era difícil realmente se sentir mal depois de ver como Lena parecia não se importar. No começo Clara achava que ela era só muito boa em reprimir as emoções, mas, caramba, ninguém era tão bom assim.

Se fosse ser sincera, sua pena de Lena não vinha por se importar com ela. Vinha por causa de Alesia.

Clara não entendia por que Alesia era... Alesia. Por que todos os garotos do grupo um dia já a quiseram, por que todos pareciam nutrir um respeito imenso por ela, como ela se fosse mais madura, mais vivida... Talvez Clara não conhecesse o suficiente da garota, mas mesmo assim ela não conseguia deixar de sentir raiva de vez em quando. Ela era bonita, claro, mas não tinha a graça de Cella, e nem era tão meiga quanto Lena. Havia um tom de arrogância nela que conseguia por vezes tirar Clara do sério.

— Ela tava me controlando, Cella. Só relaxou agora há pouco. Aquela filha da puta...

— Eu senti que você estava estranha, mas...

Clara passou pela cozinha e vislumbrou Alesia e Cella lá dentro. A parede ainda sentia os ecos da conversa que morrera com os passos de Clara.

— Vou no banheiro — disse Clara. Sentiu um olhar raivoso de Alesia, mas desta vez teve que concordar. Também não gostava de quando as pessoas se faziam de tontas.

Cella, por outro lado, sorriu. Como os garotos não gostam mais dela?

— É ali à direita. Quer algo pra beber? Estou pegando mais suco.

— Não... — Ela parou na porta por um instante. Cella distribuía suco entre quatro copos, enquanto Alesia se apoiava na mesa do outro canto, quase se sentando em cima dela. Tinha os olhos no chão. — Não é uma má ideia fazer pipoca? Vai acordar os seus pais.

— Ah. — Cella parou no lugar, a face de confusão rivalizando a doçura de Lena. — É verdade.

— Podemos...

Uma onda atingiu o apartamento. Clara caiu de joelhos, depois de frente, sendo esmagada contra o chão. Tentou gritar, mas o som não saía. Seu corpo ficou gelado, e sentiu a consciência escapando...

— FORA!

Antes que Clara conseguisse computar o que estava acontecendo, a pressão se foi. Quando ela conseguiu erguer a cabeça, viu que só Alesia estava de pé. Bufava, suor quente escorrendo pelo pescoço.

— Que porra foi essa? — disse Alesia, limpando a testa com a mão e ajudando Cella a se levantar. Antes que Clara pudesse se mover, os braços finos e fortes de Alesia levantaram-na pela cintura e puseram-na de pé, enterrando-a no lugar com um olhar. Clara tentou desviar os olhos, mas não conseguiu. Até que assim, olhando tão de perto...

— Espera aí — disse Cella.

A garota arregalou os olhos, e depois caminhou, vigorosa, até o quarto dos pais. Deixou escapar um grito quando a porta se abriu. Alesia e Clara foram atrás dela.

— O que foi? — disse Alesia, num sussurro inútil. Os pais de Cella continuavam deitados, imóveis.

— Onde eles estão? — disse Cella.

— Como assim? Eles... — começou Clara, mas, olhando com mais atenção, pareciam estranhos... Mesmo com o grito de Marcella não despertaram, nem falaram nada?

Antes que Alesia ou Clara entendessem o que estava acontecendo, Cella correu até a sala.

— Lena? — ela chamou, sem resposta. — Lena!

— Ela não tá aqui — disse Alesia, caminhando até o sofá e remexendo os cobertores.

— Quase ninguém está — disse Cella. — Neste apartamento... Neste prédio todo... Só tem nós três.


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