Callíope (II)

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Seh observou em silêncio enquanto ela praticava a sequência. Callíope expulsara todos do parque com espantosa facilidade, deixando-os sozinhos por todo o final de tarde e início de noite. Nas primeiras semanas aquela expulsão fora um desafio, mas agora ela nem suava. Parte disso era por causa do frio que veio com o outono, que dava força à sugestão de ir embora mais cedo, mas Seh sabia que não era só isso. Ele sentiu o sorriso se alastrando pela face, quente, enchendo-o com um orgulho que até seu lado sábio compartilhava. Callíope era talentosa. Se quisesse, seria grande.

Depois de dois meses lecionando em lugares isolados, Seh achou importante levá-la ao parque para sentir o mundo, e se acostumar com a fé dos outros. Não era só a Consequência que a impedia de fazer o que quisesse: era também a fé limitada dela, numa briga constante com a descrença do resto das pessoas.

Os dois se aproximaram bastante naqueles meses. Embora Seh sempre dissesse que tinha algo importante a fazer antes de sumir, a verdade é que estava livre no mundo, sem nenhuma responsabilidade, nenhuma tarefa fora talvez achar Henderson. Eles praticavam por horas todos os dias, Seh aproveitando para exercitar um pouco a mente e experimentar também. Depois das lições, de noite, eles iam a algum lugar calmo, como o topo de um prédio, uma sala de cinema vazia, ou a arquibancada silenciosa de um estádio esportivo, e simplesmente conversavam, parecendo até duas pessoas normais, ela alguns anos mais velha, ele empolgado demais ao falar. Callíope não perguntava de onde ele veio, por que se parecia tanto com um jovem qualquer, por que estava ensinando ela... Talvez tivesse medo de desagradá-lo de alguma forma; medo de que, tão fácil quanto apareceu, Seh um dia simplesmente desapareceria. Nesse tempo todo, só fez uma pergunta pessoal:

— Quantos anos você tem?

— Não tem uma resposta muito fácil pra isso, mas acho que... Três mil quinhentos e cinquenta e quatro.

Que ela respondeu com silêncio, e um baixo "eu tenho trinta e seis".

Callíope sorria ao vê-lo surgir, e ficava triste quando ele ia embora. Mas enquanto praticava era séria. Como naquele instante, no parque vazio, praticando a sequência.

— Como vão os... Qual o nome que eles se deram mesmo? — perguntou Seh, recostado em uma árvore, a alguns passos dela.

— Mantos da Capital — disse Callíope, o cenho franzido com o esforço. Seh sentiu uma flutuação no efeito que ela tentava criar, mas foi ínfima. — E fui eu que dei esse nome, não eles. Mas vão bem. O cara que apareceu mês passado, Klen, é meio esquisito mas é confiável. O Raffes tá mais no nível da Jo do que no meu, então é bacana ver os dois praticando juntos. Eu sempre tenho medo de mostrar muito a ela... de novo.

Seh não entendia aquela culpa. Foi um acidente Callíope ter mostrado a realidade à irmã, mas por que isso era ruim? A vida era tão mais interessante assim... Tinha certeza disso agora, depois de ter mostrado a Trevor e Von. Eles mostraram uma aptidão considerável, o que o impressionou (como não tinha percebido antes?), mas ainda estavam longe do nível dela.

— O talento está no seu sangue — disse Seh. — Você faz bem em tomar conta dela.

Como eu faço bem em tomar conta de você?

— Isso é fato?

— Isso o que? — ele respondeu, confuso, por um momento de volta aos seus vinte anos. Não tinha como ela ter lido a mente dele, tinha?

— Talento estar no sangue — ela perguntou, a concentração caindo o suficiente para fazê-la voltar alguns passos e recomeçar. Era um efeito especialmente complexo, e Seh não esperava que ela conseguisse de primeira.

— Ah — Seh ponderou por um momento, aliviado. — O que você acha? Pensa bem.

— Já sei, já sei, isso é real se eu tiver fé nisso...

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