Callíope (V)

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— Obrigada por me parar — disse Callíope, finalmente. O silêncio estava quase insuportável, perdurando pesadamente depois que a paixão deu trégua e ambos perceberam que teriam que conversar a respeito. — Só de pensar que eu quase matei ele... Fico muito mal, foi muito impensado. Mas quando ele atacou a Jo eu só reagi, sem pensar.

Não era por isso que Seh a tinha parado. Não dava a mínima para a morte de Kik, e nem por um segundo se preocupou com o arrependimento dela. Sabia que esse era o tipo de preocupação que deveria ter com alguém tão próximo, mas, enquanto Callíope quase consumia Kik, Seh só pensava em uma coisa.

Pensava não, simulava: as outras maneiras que aquele encontro poderia ter acabado. Numa delas Gaen prometia se juntar à Presença, planejando outro escape, que não machucaria ninguém; nesta versão Callíope obviamente não falava, pois tinha morrido há meses, esmagada tentando parar a Consequência. Em outra versão, com Callíope viva mas sem virar sua discípula, ela desafiava Kik quase da mesma forma, mas sem a perícia. Jo e Raffes seriam aniquilados pelos raios, Klen fugiria, Merriam ficaria muito ferido, e, num final dramático e impressionante, Gaen derrotaria Kik. Callíope não participaria muito nessa versão; na primeira investida mental de Kik, teria sido tornada um vegetal. E a única coisa que separava essas simulações da realidade era a presença de Seh.

— De nada — ele respondeu, distante. Qual o problema? A minha existência salvou a vida dela todas as vezes.

A voz dos Picos tentava contra argumentar, mas logo veio outra, tão cheia e certeira quanto esta, mas mais incisiva, mais poderosa. Uma voz que não pertencia a Seh, mas que, pelos anos, conseguia imaginar perfeitamente dentro de si. Henderson.

Você só consegue pensar cinco minutos à frente? O que acontece agora? Kik não era uma criança, e Callíope o derrotou como se não fosse nada. Por sua culpa. O que você vai fazer quando os tais Grão-Mestres descerem do céu? Desafiá-los você mesmo?

— Você está preocupado? — disse Callíope, franzindo o cenho.

— Por que você diz isso?

— Porque você está só calmo. Normalmente você não é só calmo, é... Sereno. Tranquilo. Não sei. Parece que nada consegue te fazer mal.

Seh riu, mas ouvindo o próprio riso entendeu exatamente o que ela quis dizer.

— Você está projetando a sua preocupação em mim. — Ele tentou soar casual, falar daquela forma neutra que Callíope já reconhecia, mas as palavras saíram agressivas, infantis, como se ele estivesse se defendendo. Talvez por Seh estar parcialmente certo, ela não percebeu.

— Me preocupo com a Jo. Não consigo tomar conta dela o tempo todo... E parece que ela conseguir se defender só aumentou o ego dela. Ela não sabe o perigo que está passando desafiando quem quiser.

— E você sabe? — disse Seh, olhos fixos nas estrelas.

— Não, você tá certo. Talvez eu esteja sendo precipitada... Mas eu preciso fazer isso. Mostrar que ajudar funciona. Que salvar os pequenos, como você me salvou, trará boas coisas para nós todos. Fará o mundo um lugar mais amigável, onde quem sabe mais pessoas possam aprender, e aproveitar melhor a vida.

Seh ficou quieto. "Como você me salvou"...

— Eu vejo que o Gaen concorda comigo, mas ele tem medo. Não sei o que aconteceu direito entre ele e esse outro grupo de onde ele veio, mas ele crê que a Presença é parecida, e isso é motivo suficiente para fazê-lo ignorar suas ambições.

— Gaen tá nessa há mais tempo que você — disse Seh. — Talvez a decisão dele seja a mais lógica. Esperar mais, até ter certeza que conseguiria peitar os mais poderosos, antes de agir.

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