Capítulo 12: Profecia (VI)

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Art nunca tinha se teleportado tantas vezes em sequência, mas estava tão cheio de vontade que a Consequência não se atreveu a atrapalhá-lo. Seguia Lewv com uma perícia que nem Von teria, compreendendo a movimentação do outro quase instantaneamente, às vezes até antes dele chegar completamente no seu destino. Eles saltavam pela cidade, aparecendo por frações de segundo em alguma das paisagens desertas que Art conhecia tão bem.

Quando deu conta de si estava de volta no supermercado. A construção parecia inteira, mas o estacionamento estava em ruínas. Fogo verde, pedaços quebrados do chão, e resíduo de poder... coisa que Art já percebia com tanta naturalidade quanto odores ou sons. Von e Trevor estavam bem? Ele procurou por eles e não encontrou ninguém. Pensaria nisso depois. Preparou-se para saltar atrás de Lewv, xingando-se pela distração, mas havia algo diferente. Lewv não estava mais na cidade. No começo Art achou que ele tinha ido mais longe, talvez para outra cidade, mas então entendeu que ele não se movera para nenhum lugar que se conseguiria alcançar caminhando.

Sentia a localização, mas não compreendia. Não só nunca tinha sentido algo como o lugar; sequer concebera a possibilidade de algo do tipo existir. O melhor paralelo que conseguia traçar era o vermelho e negro visto dos Picos, mas ainda assim era diferente... O vermelho e negro coexistia com os Picos, como uma outra dimensão. O espaço para onde Lewv se teleportara era menor do que o universo: era contido, recluso. Um bolsão flutuando entre os aspectos da realidade.

Não tinha tempo para entender. Precisava achar Lewv. Torná-lo um homem físico, agarrá-lo pelo colarinho e forçá-lo a convidar Art formalmente para fazer parte da Presença. Se abandonasse a raiva teria que pensar nas coisas. Teria que pensar em Lena.

Art entendeu a diferença técnica do último teleporte de Lewv, e seguiu.

E então estava sonhando.

Não se lembrava de dormir, mas era sempre assim, não era? Tinha que estar sonhando. Aquilo era claramente um de seus sonhos psicodélicos. A raiva sumiu, assim como o pesar, o arrependimento, e todas as outras emoções. Ele ficou parado, boquiaberto, observando.

Estava num espaço branco. Branco como uma tela de pintura um pouco amarelada, um tom confortável. Era tudo tão uniforme que não havia senso de distância: o horizonte podia estar a dois ou a dois milhões de passos dele. Sentia-se perturbadoramente enclausurado e absurdamente livre.

Ele piscou, e o cérebro começou a processar melhor a informação que recebia. O espaço, a tela, era coberto de pinceladas. Traços agressivos, pontos negros que pareciam buracos, rasgos, formas em relevo, e até chamas, queimando porções inteiras. Via grandes formas geométricas, triângulos e cubos e prismas coloridos como num quadro modernista, rastejando pelo branco, consumindo e sendo consumidas por grandes árvores, por vasos sanguíneos, estrelas, escuridão. Tudo ou a milímetros dos olhos dele ou a uma distância imensurável.

Era uma guerra. Art tentou compreender as estruturas, os ataques, mas estava exausto. Tentar entender o que via era como tentar escalar uma montanha depois de uma maratona. Era tão surreal que ele nem sentia medo. Se alguma das formas o percebesse seria seu fim. Não tinha forças para se defender.

Art piscou, e estava de volta na cidade. Estava na borda norte do lago, perto da avenida. Estava de volta numa realidade lógica, compreensível.

Mas ele mal teve tempo para apreciar isso. Logo viu Von caído, de joelhos. Uma análise rápida e percebeu que o colega estivera à beira da morte, atacado mentalmente. Mas se recuperava rápido; não precisaria de ajuda. A alguns passos de distância de Von estava um velho que Art não reconheceu. Pensou que podia ser alguém da Presença, mas era uma figura tão ordinária que descartou a possibilidade.

E, entre Von e o velho, estava Alesia.

Ninguém viu Art: estavam olhando para o outro lado, para os prédios da borda do centro. Alguns não estavam mais lá; olhando com calma, Art percebeu que um pedaço colossal da avenida não estava mais lá, mas logo o encontrou, caído junto com as ruínas de algumas construções. Mas também não era para isso que eles olhavam.

Art pensou em entrar em Alesia, entender o que estava acontecendo, mas quando tentou sentiu uma fisgada na cabeça, perdeu o fôlego, e simplesmente não conseguiu. Não foi nem a Consequência; estava absolutamente exausto. Não se preocupara em repor energia ou afastar o cansaço enquanto se teleportava atrás de Lewv, e mal conseguia contar quantas vezes tinha feito aquilo.

Tentou mais uma vez, e os joelhos cederam. Caiu sentado, e mesmo grunhindo ninguém olhou para ele. Estava tão cansado. Sentia-se mole.

E, como um mole, tudo que pôde fazer foi observar.


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