Capítulo 12: Profecia (III)

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— Isso é ridículo. A gente tá aqui faz quase meia hora. Cadê o Art?

Alesia esperava que Von falasse alguma coisa há um bom tempo, mas não imaginou que diria só isso. Ela também estava impaciente com a espera, mas praticamente se esquecera de Art. O silêncio fora muito mais incômodo.

— Será que aconteceu alguma coisa? — disse ela, ainda sentada ao lado dele, na grama do canteiro do centro da avenida. — Você não consegue procurar ele?

— Não — disse Von, refletindo. — Ele tá sempre se prevenindo contra isso. Talvez eu possa perguntar "onde tá o Art", mas creio que a melhor resposta que vou ter é "na cidade". Talvez o Trevor consiga algo mais preciso.

Von se levantou, batendo nos jeans para tirar a sujeira. Olhava para os lados da avenida, o lago num deles e os prédios do centro no outro.

Alesia não se moveu.

— A gente não tem como ter se desencontrado — disse Von, caminhando em círculos. — Mesmo que ele tivesse ido te procurar no supermercado, ele teria que passar por aqui. E se ele não te encontrasse lá ele voltaria pra cá, né?

Alesia costumava achar que entendia Von. Quando considerou beijá-lo e fazê-lo se lembrar da formatura, imaginou que ele não se afastaria como fez. Imaginou que ele falaria o óbvio, faria as perguntas óbvias. Imaginou que ficaria com raiva. Nunca pensou que a reação dele seria aquele silêncio, e, agora, uma mudança de assunto.

— Escuta, Von...

— Hm?

— Funcionou, não funcionou? Você se lembrou.

Von acenou positivamente.

— E você não vai falar nada?

Ele não falou. Parou de andar, parecendo até relaxado. Alesia ficou de pé.

— Fala alguma coisa! Pelo menos me xinga, sei lá!

— Não sei se lembrar foi bom ou ruim. — Von cedeu, penteando o cabelo com a mão. — Alesia, esquece. Você demorar tanto pra me falar só mostra que você tomou uma decisão a meu respeito há muito tempo. Tem muito em jogo agora pra gente ficar se preocupando com esse tipo de coisa.

— Esse tipo de coisa? Essa é a nossa vida, Von. Cansei de fugir disso. Deixa eu entrar um pouco na sua cabeça dura.

— Eu teria deixado. — Ele riu. — Eu teria deixado com o maior prazer. Você sabe. Você viu. Pareceu até que você gostou; ah, que idiota eu. Que otário. Você viu o Art e a Cella na formatura, foi isso?

Alesia mordeu o lábio.

— Não me diz que não tem a ver com isso — ele continuou. — Mas você mesma não quis ir jantar na casa dele.

— Ele não chegou a me convidar... — Von baixou os olhos, num claro sério que você quer que eu acredite nisso? Ela bufou, derrotada, e recomeçou: — Tá bom, ele só não chegou a me convidar porque eu não deixei. Eu não queria. E eu vi ele e a Cella antes de te encontrar, mas não foi por ciúmes, ou vingança, ou coisa assim. Por favor não ache isso. Naquela noite... — Alesia se lembrou da insegurança que a abateu. Da dúvida. Se eu estive errada sobre o Art... Será que estou errada sobre o Von? Abriu a boca para tentar explicar isso, mas não foi isso que saiu: Naquela noite eu não sabia o que eu queria.

Von riu alto.

— Não esperava essa dúvida adolescente de você, Alesia.

— Escuta, eu... Eu fui idiota. Desculpa. Mas... Eu podia nunca ter te contado, não podia? Teria sido mais fácil.

— Por que você me contou, então?

— Porque aconteceu — disse Alesia, firme. — E porque assim ficamos quites. Você quase me matou, eu tirei de você um momento. Elas por elas.

O riso de Von se tornou sarcástico.

— Só por isso você me falou? — O sarcasmo foi tomado por um tom triste. — Pra ficarmos quites?

Alesia abriu a boca para responder, mas não tinha resposta pronta. Sentiu as bochechas vermelhas, e teve que desviar o olhar.

— Não sei, Von. Talvez... Quem sabe eu tivesse mais um motivo...

Ela não conseguiu terminar. Von puxou-a pela cintura, juntando o corpo ao dela, os lábios próximos... Mas não o suficiente. Mesmo com o contato parando por aí, o coração de Alesia quase explodiu. Só tinha sentido aquilo uma vez antes na vida, um calor, nervosismo, excitação. Ele estava hesitando? Não. Estava esperando a reação dela.

Alesia alisou o rosto de Von, mergulhando fundo nos olhos dele. Não parecia com medo. Não parecia nervoso. Pela primeira vez em meses, parecia tranquilo.

Ela fechou os olhos e percorreu os centímetros que separavam os dois.

— Já tá tudo fodido mesmo — Von riu, quando os lábios deles finalmente se separaram. — Eu ainda acho que vou morrer. O grupo de estudos já foi pro caralho. O Cennen tava certo numa coisa que falou: não dá pra voltar. Pra faculdade, pra vidinha. Não tenho nem ideia do que fazer, mas não dá pra ficar aqui. Depois que isso acabar, se eu ainda estiver vivo, vou cair fora. — Ele hesitou, olhos grudados nos dela, intensos. — E quando eu for, você sabe que é só vir comigo. Você sabe. Você sempre soube. Você viu quanto eu pensava em você nos Picos.

— Von... — ela gaguejou, sem jeito.

Von sorriu seu sorriso convencido.

— Você tem tempo pra pensar nisso. Mas por enquanto...

Alesia sentiu as bochechas queimarem, e tentou até ficar com raiva, mas antes que pudesse ele a beijou mais uma vez e a raiva evaporou, junto com a insegurança, a preocupação, e até o medo. Perdeu os dedos no cabelo escuro dele, perdeu o ar em sua boca, perdeu o tempo...

Von recuou, afastando-se. Alie congelou, imaginando se tinha feito algo errado, falado algo errado, mas ele não olhava para ela. Olhava para os lados, alarmado.

— Von? O que foi?

Os olhos dele se arregalaram.

— Tem alguém vindo. Merda. Merda merda. — Ele agarrou Alesia pelos ombros. — Alesia, se esconde.

— Hã? — Só havia um poste próximo a eles; no mais, estavam no meio da avenida, praticamente um campo aberto. — Onde?

— Esquece, não dá. — Ele olhou para baixo. — Fecha os olhos.

Antes que Alesia conseguisse reagir o mundo ficou escuro. Sentiu uma pequena queda, e o cheiro de terra. Logo começaram as vozes, abafadas, vindo de cima.

Por que foram interrompidos justo naquela hora? Von estava certo no que disse. Ela já entendia que a vida do curso de Física era uma piada. Conseguia entrar na mente das pessoas, conseguia ver sonhos, saltar por cima de prédios, deslocar a visão. Talvez, com mais um pouco de estudo, conseguisse até fazer ouro. Qualquer carreira parecia totalmente irrelevante.

Teria que ir embora. Finalmente deixar a mãe e o padrasto sozinhos, como eles queriam. Seria bom para todos. Viajar por aí... Nunca tinha pensado seriamente nisso. Mas, olhando agora, parecia tão fácil. A vida parecia tão cheia de excitação mais uma vez, como era quando ela era mais nova e feliz.

E...

Demorou a admitir, mas era verdade. Seh fora uma paixão ilógica, soube disso quando conversou com ele naquele espaço branco. Fora um escape, algo mais fácil de se lidar, uma desculpa, um impulso. E Art era interessante, Art tinha seus momentos doces, mas era dissimulado demais. Covarde demais. Depois que saber que o Livro era coisa dele, nunca o veria da mesma forma. "O que você pensa de mim não importa", ele disse. E Von...

Enterrada no chão, ela engoliu a insegurança e encarou a verdade. Não dividiria a vida com ninguém no mundo além de Von.


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