Capítulo 1: O Livro (V)

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O riso demorou para morrer, e quando o fez o quarto rosado encheu-se de uma seriedade que as duas até então escondiam. Alesia desviou os olhos, fingindo analisar algum dos pôsteres de filme na parede. Ia dormir na casa de Cella no primeiro dia de aula desde os treze ou catorze anos. Assim que Art a encontrou, não foi? Ficou esperando. Sabia que ela estava indo pra casa da Cella. Claro que Art não ficou ali olhando a livraria ao acaso. Queria que ela achasse que foi, como quase achou, mas ela reconhecia uma das conversas ensaiadas de Art. Conveniente a livraria ficar bem no caminho até a casa de Cella, mas mesmo que não ficasse ele arranjaria outra desculpa.

Alie não conseguiu tirar o encontro da cabeça pelo resto da noite. Ela e Cella viram um filme antigo de suspense e tiveram conversas mais ou menos típicas para garotas da idade, algumas poucas mais sérias que outras. Cella falava algo sobre Trevor, mas Alesia estava com a cabeça longe. Não falaram do rumo estranho que seu pequeno grupo de amigos estava tomando, mas, aos olhos delas, estava tudo sob controle.

— Você devia conversar com o Von, Alie — disse Cella, inclinando-se na direção dela. — Não seja tão teimosa. Tá fazendo mal pra você e pra ele. Você viu ele hoje? Tava péssimo, tava super estressado.

A qualquer outra pessoa no universo Alesia teria fechado a cara e respondido de forma grosseira. Mas não Cella. Nunca Cella.

— A gente... tem diferenças ideológicas. Não sei se vamos nos entender de novo algum dia.

— Tenta, Alesia. Desde que vocês brigaram você também não tá legal.

Ah, se você soubesse.

Cella não sabia de nenhum dos detalhes do último dia de Alesia na casa do lago, mas não precisava saber para entender a essência do que tinha acontecido. Esse era um dos alicerces da relação das duas: Alesia não gostava de contar, e Cella não precisava que contassem. Ela entendia meias palavras e olhares como ninguém. Parecia até sobrenatural.

— Eu nem falo com ele tem... — Alesia baixou os olhos, mostrando-se mais insegura do que faria com qualquer outra pessoa. — Sei lá, semanas. Ele deve tar bravo comigo também.

— Claro que não! — Cella inclinou-se ainda mais, o cabelo castanho-claro recém escovado escorrendo e roçando no joelho de Alesia. — Fala com ele. Pelo menos pensa nisso.

— Tá bom, Cella.

O sorriso de Cella era a própria recompensa. Até conseguia arrancar um da própria Alesia, que se permitia tão poucos desses. Mas Alie logo voltou a ficar séria. Não sabia o quão sincera estava sendo com a amiga.

Marcella não precisava saber de todos os detalhes da vida dela, mas, bom, precisava saber de algum. E, desde que os quatro encontraram Merriam perto da casa do lago, desde que efetivamente viraram os quatro, ela não tinha detalhes a dar. Não podia contar, mostrar, claro que não. Mas a situação ficava insustentável: era difícil para Cella ver Alie voltar a ser tão fechada, logo no ápice da amizade das duas. E era difícil para Alesia conviver com alguém que não entendia. Ela sentia-se mais... Velha, não, mais madura... não havia boa palavra. Sentia-se mais que Cella, de uma forma que irremediavelmente afastava as duas.

— Você tá pensando no Livro? — disse Cella.

— Hã? — Alesia ergueu a cabeça rápido, apagando a expressão contemplativa. Cella não estava certa, mas também não estava errada. O Livro tinha a ver com os quatro, de alguma forma. — É, mais ou menos.

— Eu tô muito preocupada. — Cella demonstrava isso com o olhar, frio e sério, que não combinava nada com seu rosto arredondado. — Será que a gente devia fazer alguma coisa? O Von parece saber o que tá acontecendo... Mas não sei, sinto que eu devia...

— Fica tranquila — disse Alesia, sem um pingo do calor que aquelas palavras teriam se fosse Cella falando. — Não tem a ver com você.

Como resposta, Alie recebeu um olhar apreensivo. Cella não precisava nem falar.

Mas tem a ver com você?

Os pais de Cella chegaram nesse momento, para o alívio absoluto de Alesia. Jantaram, conversaram sobre amenidades e logo estavam na cama, Alesia num colchão no quarto de Cella, sozinha com os pensamentos.

O Livro era importante. Era coisa grande. Mas, se quisesse entendê-lo, tinha que entender Art e Von, o que diabos eles andaram fazendo. Era coisa de algum deles? Não perguntaria diretamente; esse não era seu estilo. Mas só de pensar já bolava um plano.

Ela se virou no colchão, vendo Cella ressonar na cama, acima. Ela queria falar sobre isso. Queria ter alguém para falar sobre isso. Quem sabe Cella seria capaz de convencê-la a parar de ser teimosa e simplesmente ser sincera com Art e Von: era algo que a amiga faria. O seu apoio com certeza mudaria como Alesia veria aquela situação.

Mas não podia conversar com Cella. Nem agora, e, quem sabe, nem nunca mais.


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Obrigado pela leitura! Curtiu o primeiro capítulo? Deixe um comentário! Sexta-feira começa uma parte da história entre capítulos: as Férias do Art! Se você ficou curioso e quer começar a ler agora mesmo, dá uma olhada aqui: http://bit.ly/principiosdonada    

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