Alesia caminhou entre a arte abstrata que era aquela realidade, e, quando finalmente viu Art, percebeu que não tinha um plano. Ainda estava surpresa por aquilo ter realmente funcionado, mas concentrou-se, dando força à própria fé. É claro que isso funcionou. Eu sei o que eu tô fazendo.
Art estava sentado numa forma borrada, e desenhava com fogo no céu. Seu dedo servia de pincel, tirando a tinta do outro braço, que estava em chamas. Parecia concentrado.
Ela riu. Seh era indubitavelmente o mais criativo do grupo, mas sempre teve inveja dos sonhos psicodélicos de Art. Art contava-os baixo, um tanto envergonhado, e quase sempre que comentava que teve um sonho interessante arrependia-se de imediato, quando os olhares à sua volta pediam por uma descrição acurada. Não se orgulhava do que via quando dormia, mas não tinha motivos para omitir suas experiências.
O fogo flutuava a poucos metros dele, formando uma imagem disforme, as chamas vermelhas acima e negras abaixo, dançando no ar, seguindo o dedo-pincel de Art. Fazia traços verticais bem definidos agora, o fogo subitamente cinza. Alesia chegou perto, tímida.
—...Art? — disse ela, baixinho. Não sabia como ele reagiria por vê-la ali, e nem quanto poder tinha naquela situação. Art virou-se, por um segundo mantendo a expressão de paisagem.
— Alesia. Olá.
Art não usava roupas, tampouco estava nu. Seu corpo, tudo fora a face, era borrado, indistinto. Alie concluiu que ele não estava pensando naquele aspecto de si. Ele se levantou e caminhou na direção dela, apagando o fogo do braço num balde que surgiu no caminho.
— Venha — disse ele, estendendo a mão. — Daqui a pouco vai escurecer.
De sua forma borrada surgiu um terno azul-escuro e uma gravata vermelha. Tinha o cabelo bem penteado para trás, coisa que ela vira só meia dúzia de vezes. Alesia deu um passo à frente, agarrando a mão do amigo, e quase tropeçou no vestido. Era arroxeado, e, embora levemente diferente da sua memória, a garota reconheceu seu vestido de formatura. Se assustou ao ver-se com ele, saber o quão forte era a influência de Art ali, mas relaxou ao perceber como Art estava calmo. Não percebia que era uma invasora, e nem a estranheza da realidade que parte dele criava.
Caminharam sozinhos à beira do lago. Estavam na margem sul, perto da avenida e do centro, longe da casa do lago. Havia um ou outro carro borrado na rua, e o cenário era como ela se lembrava... alguns anos atrás. A calçada era mais simples, os postes de luz inexistentes, e não havia ciclovia.
— Que bom que você veio. Eu queria falar com você.
Art falava tranquilo, sem aquele peso que ela notou quando se encontraram no centro, dias antes. O amigo parecia um tanto mais baixo, e um pouco mais magro. Alesia percebeu que ela própria estava diferente: o cabelo era sedoso como nunca foi, estava mais baixa... tinha menos busto?
Aquela cena nunca acontecera, por decisão dela. Quando percebeu que Art planejava chamá-la para aquela caminhada, na noite da festa de formatura do ensino médio do grupo, ela agiu com cautela, nunca dando a ele chance de fazer o convite. Ele não fez, e no final eles mal se viram na festa inteira.
Estavam na ideia de Art do que teria acontecido aquele dia, caso ela tivesse aceitado o convite. Seria aquele um sonho recorrente?
— Escuta, Art. — Ela sabia que podia sair quando quisesse, mas fora isso não tinha nenhum poder naquele espaço (nem sobre a própria forma). Uma palavra errada e quem sabe Art acordasse, expulsando-a. — E o Von?
A calçada tremeu; o lago escureceu. Art por um instante fez uma expressão assustada, mas logo voltou ao seu leve sorriso.
— O que tem ele?
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Princípios do Nada
Mystery / ThrillerE se a vida pudesse ser tão interessante quanto você achava que seria quando criança? E se todas as histórias que você imaginava, as aventuras, os poderes, a grandeza que você esperava para si... E se tudo isso fosse de novo verdade, tão real que ch...