Seus verdadeiros olhos

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O mesmo sonho.

Sempre o mesmo sonho.

Ela acordou sobressaltada, os lençóis pinicando sua pele suada, deixando-a hiper ciente de seus sentidos.

Dos sentidos dele.

Ele tinha cheiro de grama cortada, terra recém-molhada e rosas. Contudo, seu cheiro não estava lá quando o deus sombrio tomava forma.

Ele nunca teve momentos de lucidez, disso ela sabia. Mas, naquele momento, foi como se o cheiro tivesse atravessado as paredes. Era vívido.

O coração da jovem Grã-Feérica martelou no peito, e ela se levantou num súbito, pegando o penhoar de seda, os pés descalços contra a pedra fria conforme irrompia no corredor.

Seu quarto ficava no final do corredor. Ela se apressou. Possivelmente não tinham muito tempo antes que...

Ela não pensou. Não pensou nas consequências de estar errada, embora rezasse para que não estivesse.

A maçaneta girou e Elain se viu no quarto do deus sombrio. Não havia nada de extraordinário. Uma cama enorme diante da porta, duas janelas flanqueando-a — onde o brilho da lua entrava como uma cortina de luz prata —, uma cômoda na parede direita e uma porta bem ao lado, que levava ao lavabo.

Não tinha nada de extraordinário, porque ele realmente não precisava guardar roupas em um armário, por exemplo.

Ela entrou apressada, fechando a porta atrás de si e percebeu o homem seminu com as mãos apoiadas nas laterais da janela a esquerda, a cabeça baixa, o peito subindo e descendo irregularmente como se jamais tomasse ar o suficiente.

Ele só usava uma calça larga marfim. Seu torso poderoso estava banhado pelo luar, os cabelos loiros sacudindo a brisa que entrava.

Ele parou. Elain tomou ar. Não tinha pensado em uma desculpa caso ele não fosse ele.

Teria de esperar para ver.

Por cima do ombro, ele encontrou seus olhos.

Elain encostou na porta, alívio descendo por sua espinha, afastando o gelo que se acumulava dentro de si. Mas ela ainda tinha medo, por mais que tentasse esconder, seu cheiro a entregava.

— Você — ele disse, virando-se para ela. A voz dele estava rouca, diferente.

Elain observou a cama e viu que os lençóis estavam rasgados por garras...

O deus sombrio não perderia controle assim.

A sombra do quarto semi iluminado diminuiu com a posição da lua.

Era o solstício de verão. O prazo de Bride.

Elain engoliu em seco quando os olhos dele foram iluminados pela luz.

Verdes.

Como as florestas. Verdes como a grama de seus jardins, que agora deveriam estar abandonados.

Tão verdes que Elain suspirou por um instante.

Ele cheirou, as narinas dilatando em um movimento predatório e rústico.

— Você é a irmã da Feyre — continuou ele, em reconhecimento.

Cada parte daquele corpo poderoso se moveu enquanto ele se aproximava dela.

Elain se endireitou.

— E você é Tamlin, Grão-Senhor da Corte Primaveril — ela precisava de mais essa confirmação.

Tamlin chegou perto e parou a um metro dela. Seus olhos verdes estavam tristes, confusos, perdidos.

Ele assentiu.

— Sou Elain — apresentou-se, não certa de que ele se lembraria.

— A parceira de Lucien, eu lembro — disse ele, franzindo o cenho e levando a mão a cabeça, como se quisesse arrancar fora por uns instantes.

Tamlin não se lembrava mesmo da reunião dos Grão-Senhores, porque já estava possuído na época. Na ocasião, o deus sombrio fingira a cor dos olhos de Tamlin, mas não fingia agora. Ela sabia que não poderia ser mentira. Tudo que ela fez foi para que levasse a este resultado.

— Não sou — respondeu ela, culpada por isso. Devia mais do que desculpas a Lucien. Tamlin ergueu sua sobrancelha arqueada. — Uma longa história, uma que não temos tempo agora.

Ele piscou, as narinas se dilatando novamente.

— Você cheira a jasmim. — E ela não sabia se era ou não um elogio.

— Preciso que me ouça. — Ela se forçou a não pensar em suas últimas palavras. — Você acha que está sozinho aí? — E apontou com o queixo para sua cabeça.

Ele encarou o chão, os olhos movendo de um lado para o outro. Após uma pausa, levantou a cabeça para ela. Gotículas de suor cobriam suas têmporas pelo aparente esforço.

— Por enquanto — respondeu, honestamente. — Ele é forte, Elain. Muito, muito forte. Estou tentando há tanto tempo...— as unhas dele saíram por sobre a carne e ele respirou fundo, como se parar tomar o controle. — Quero ele fora, quero...— Tamlin arfou, incapaz de continuar.

Estava tão frágil, parecendo o oposto da casca dura e enrijecida que havia aprisionado sua irmã quase quatro anos antes.

— Eu sei. — E essa consciência a assombrava em pesadelos e avisos há três anos.

Aquele mesmo sonho. Que dizia o bastante, mas não dizia nada ao mesmo tempo.

— Como sabe?

— Vou ajudar você, é o que importa — revelou ela, sentindo um formigar sob a pele. — E pode confiar em mim nisso. Coloquei tudo a perder.

Ele balbuciou, arregalando os olhos com desconfiança.

— Para me ajudar? — Tamlin levou a mão ao peito impecável e rijo de um guerreiro feral.

Ela fez que sim.

— Porque você precisa continuar lutando. Não desista. Ele não ganhará enquanto você resistir.

A informação impactou seu semblante a ponto de ele dar um arquejo, a pele dourada firme arrepiando.

Elain se virou para a porta, o coração martelando contra as costelas. Sua mão foi sobreposta por outra na maçaneta. Mãos calejadas, mas suaves.

Só então que percebeu ele atrás dela, a uma certa distância, mas ainda ali.

— Por que está me ajudando? Deveria querer me matar, como todos da sua Corte — a dúvida era sincera, genuína. Sua voz desceu uma oitava.

Os ouvidos de Elain zuniam com a pressão sanguínea acelerada.

Ela pensou sobre aquilo e também foi sincera.

— Todos deveriam ter uma escolha — falou, mal reconhecendo a amargura em sua voz. A dor se expandindo no peito. — Eu não tive — assumiu, pela primeira vez desde que tudo começou.

Tamlin tirou a mão da dela. O ar frio bateu, deixando-a ciente da ausência.

— Olhe para mim — pediu ele, suavemente.

Elain o encarou por cima do ombro, guardando bem os olhos verdes para quando os visse de novo.

— Como vai fazer isso? — Quis saber o Grão-Senhor.

Por um momento, ela apenas respirou. Então, vendo que não duraria muito mais tempo, respondeu:

— Na hora certa, você saberá. Continue lutando, Tamlin. — Limpou a garganta, abrindo a porta para o frescor do corredor. — Livre-se dos lençóis rasgados, ou ele notará sua consciência. Estarei aqui da próxima vez para te puxar.

***

Bônus de hoje, amores. Até quinta ;)

(teorizem haha)

Corte de Fogo e GeloOnde histórias criam vida. Descubra agora